segunda-feira, 25 de julho de 2011

MINHA PÃE E MEU(S) PAI(S)


04. Roberto

Numa bela noite de formatura a long, long time ago... Após a entrega dos diplomas (aí nem lembro se a formatura era minha ou do Alexandre), tirávamos algumas fotos no canto entre a Concha Acústica e o prédio da Reitoria da UFC, quando o Tio Roberto reconheceu um colega de longa data na sessão fotográfica ao lado. Fulano! Quanto tempo! A formatura é do meu filho! Essa aqui é a Marúsia, minha irmã, mãe dele! A confusão só durou alguns segundos até que ele explicasse que nos tinha como filhos, eu e Alexandre.

O momento podia passar esquecido no tempo se não ilustrasse algumas características inerentes ao meu tio: a primeira é a memória; reconhece pessoas que há muito não vê e lembra-se de detalhes e datas com precisão; a segunda é que, mesmo sendo muito sério, ele adora gerar este tipo de confusão; pegadinhas (vide Brincadeirinha de susto), piadas sutis (ou nem tanto), gozações etc., sempre foram parte de sua personalidade; a terceira, e mais importante neste contexto, é como ele assumiu pública e intimamente nossa paternidade, minha e do Alexandre, desde que fomos morar em Manaus com ele.

O Alexandre, além de ter nascido primeiro, ganhou seu apadrinhamento católico. Eu vim depois, de carona, e conquistei meu espaço especial no seu coração. Longe de ter ciúmes do padrinho de meu irmão, só me ficava a gratidão daquela dedicação com a gente, da igualdade de tratamento entre nós e seu filho Rogério, único primo da minha idade.

A impossibilidade dele de gerar filhos o fez ter vários filhos assumidos: Rogério e Camila adotados durante seu primeiro casamento, com a Tia Fafá; Daniel e Dana, filhos da Tia Cristina, com quem se casou pela segunda vez; eu e Alexandre de casamento nenhum! Fora aqueles inumeráveis que ele ajuda como se fosse um padrinho.

Rigoroso em nossa criação, ele nos cobrava sempre algo mais, como no dia em que apresentei orgulhoso um boletim coberto de notas 10 e ele quis saber a razão daquela solitária nota 9! Se não fossem os seus olhos que sorriam sozinhos, eu poderia até ficar chateado.

Nesta época morávamos com ele em Manaus. Fomos por necessidade, uma vez que minha mãe tinha dificuldades em sustentar sozinha nossa família de “pãe” e quatro filhos, mas curti como a mais longa férias de minha vida, como tivesse ganhado uma oportunidade incrível de um lar completo como só vim ter anos depois, como se eu tivesse mais um irmão, o Rogério, mais uma mãe supercarinhosa, a Tia Fafá, e mais um pai como poucos.

Tenho saudades do dia do churrasco, do dia da feijoada, dos passeios, dos cafunés...
Mesmo quando voltamos pra Fortaleza, a saudade de nossa mãe e nossas irmãs quase espocando o peito (a trilha sonora era encabeçada por Elba Ramalho cantado De Volta pro Aconchego), ele nunca deixou de olhar por nós.

Fomos crescendo e o respeito dele com a gente, com os profissionais que nos formamos, como irmãos maçons que nos tornamos, com a família que nós formamos, cresceu em mesmo nível. O amor dele com nossos filhos é denotado no tratamento de Vovô Beto. Nada mais justo. Se meu irmão sempre foi a mais presente figura paterna, Tio Roberto foi o pai de maior referência na minha vida.

Quando me formei, curiosamente (ou não) na mesma profissão que meu pai (o biológico), foi ao meu tio que dei uma cópia de meu Projeto de Graduação. Nesta edição única, fiz uma dedicatória que não acho mais cópia alguma pra publicar, mas lá eu escrevi uma coisa que resume tudo o que eu sinto por ele: que me perdoasse se a palavra Tio não revelasse tanto amor quanto a palavra Pai.

Em duas ocasiões preparei meu coração para perder meu tio. Uma vez há dez anos quando teve câncer nos pulmões e outra vez neste ano, quando reincidiu no cérebro. Na mesma medida foi a alegria pela cura nas duas ocasiões, não sem antes sofrer ao o ver fraquinho, careca e debilitado pelo tratamento.

Fica mais tempo, Tio. Ainda precisamos do senhor pertinho, dos seus olhos que sorriem apertadinhos que nem os do Vovô Jesus, do seu beijo carinhoso na testa que me faz sentir aquele mesmo menino distraído que foi morar com o senhor em Manaus.

Fica mais tempo, Tio. Fica o suficiente pra minha filha curtir melhor o Vovô Beto, ou os filhos dela curtiram o Bivô Beto, ou até eu ficar carequinha que nem o senhor, e me dar beijos na minha testa lisinha, ou até, sei lá...

Só fica mais tempo.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

O FUSCA


– E aí, Zé! Tem fogo?

Sem nem responder, ele estica a caixa de Argos com os olhos semicerrados por causa da fumaça do Derby no canto da boca. Recebe o fósforo de volta e me pergunta:

– Já viu meu fusca novo?

O Zé era uma figura! Era, não por ter morrido, mas porque tem anos que não o vejo! Mais pra branco, barba sempre por fazer e cabelos cacheados, tinha uma dessas vozes que ribombam que você nem sabe como saiu daquelas costelas magrinhas. Era o zelador da clínica do lado do escritório de arquitetura em que eu trabalhava na Tibúrcio, e lá morava com mulher e dois filhos tão lindos que ele não cansava de dizer: – A muié diz que são meu... eu vô criano!

– O branquinho ali? Massa cara! – estranhei que ele pudesse comprar o carro.

 “É, má, foi o mininu! – já foi ele começando a explicar, como que respondendo a confusão no meu olhar. Rapaz, eu recebi meu primeiro cartão de crédito, duzento e cinqüenta conto! Sácomé pobre, disse logo:

– Muié, pega os mininu que nóis vamo fazê uma fêra!

Fumo a pé que é pertim daqui, aquele Jumbo (já era Pão de Açúcar há uns 15 anos) ali do sinal (da Des. Moreira com Anto. Sales). Chegano lá foi um prá cada lado, a muié pra direita, eu pra esquerda e os mininu correnu como uns doido. Num deu dez minuto só ouvi o papôco e o chêro de cachaça no ar!

Na mesma hora eu pensei: – Foi meus minino!

Nem precisei procurar e lá vem o segurança trazenu o mininu pelo braço com se fosse um mirim.
– Esse menino é seu? – o hômi perguntou como se ele tivesse mentinu.

– É meu mesmo, seu moço! – acho que ele acreditô só pra ter alguém pra culpá. Ele começou a contar que o mininu quebrô uma garrafa de uísque daquelas gigante que ficava no chão num negócio de ferro.

– O senhor vai ter que pagar!

– Eu nân, meu amigo! Eu num bêbo, a muié num bebe, os mininu num bebe, e eu num vô pagá nada.
– Então eu vou chamar o gerente!

– Pode chamar até o Papa! – eu mais inchado que baiacu; o uísque era mais caro que a minha fêra todinha.

Aí lá vem o gerente, de terno e gravata, cabelim no gel!

– Meu senhor, o seu filho quebrou uma garrafa de whiskey caríssima! O senhor é responsável por ele! O senhor vai ter de pagar!

–  Hômi, Seu Gerente, eu num bêbo, a muié num bebe, os mininu num bebe, e eu num vô pagá nada.
– Meu senhor, ou o senhor paga, ou a gente vai resolver na delegacia!

– E eu tenho essas opção tudinha? Então vâmu pra delegacia!

E lá fômu eu, a muié, os dois mininu, o segurança e o gerente.

– Seu Zé, o filho não é Seu? – começou o Delegado.

– A muié diz que é...

– Ele não quebrou o whiskey?

– Seu doto! Eu num bêbo, a muié num bebe, os mininu num bebe, e eu num vô pagá nada.

– Então não tem jeito, eu vou ter que fichar o senhor!

– Intão eu quero o meu a-di-vo-ga-do!

– E o senhor tem advogado? – com a maior cara de surpresa e um sorrisim de canto de boca.

Eu liguei pro advogado da clínica, chapa meu, já tinha me dito qui’eu podia chamar se precisasse. Tava era divinhanu! Contei a marmota todinha pra ele e ele disse que ia era processá os fi-du’a-égua! Eu disse pra ele: – Hômi, o que tu tirá deles nóis racha mei-a-mei!

Ele chegou lá já chei de moral! Disse que todo mercado, supermercado, banca de revista, o escambau, tem de deixá as coisa de adulto no mínimu a um metro do chão; que o gerente tinha levado criança e muié pruma delegacia, quando só precisava levá eu; que isso e aquilo; blá-blá-blá, bli-bli-bli, ... e processô o supermercado!”

– Oí o fusca! É do mininu!

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segunda-feira, 11 de julho de 2011

MARÚSIA RODRIGUES


Um Conto de Natal

Era o dia 22 de dezembro de um ano do passado.

O comércio da Rua Grande, como era conhecida a Rua Oswaldo Cruz no centro da cidade de São Luís, capital do estado do Maranhão, encontrava-se apinhado. As pessoas acotovelavam-se no balcão das lojas gritando pelas vendedoras já atordoadas pelo burburinho crescente. Mais tonta ainda estava eu, que juntamente com meu marido tentava comprar presentes de Papai Noel para nossos filhos. Após muito tempo e sacrifício, compramos uma bicicleta, um carrinho, uma bola e uma boneca, que fariam a alegria das crianças enquanto fossem novidade. Fomos então à casa de uma amiga para escondê-los até o dia da véspera de Natal. Guardamos tudo e seguimos para casa.

Ufa! Terminei e vou descansar, pensei satisfeita com missão cumprida. Deitei tranquilamente com um braço sobre os olhos, como é costume meu, e tentei relaxar. Quem dera! Alguém me toca e vejo uma gorduchinha de joelhos em cima da cama com os grandes olhos verdes sorrido de euforia. Ela me diz:
- Mãe, já fiz minha carta para o Papai Noel. Você coloca no correio?

- Claro que sim, respondi sem preocupação, pois ela já me confidenciara que queria uma bicicleta.
Peguei o papel com um sorriso, pois o mesmo continha uma única frase e vários desenhos de rosas e bonequinhas feitos por ela. Li o seguinte texto:

- “Papai Noeu, quero ganhá de prezente uma bisicleta Caloi azul. Obrigada, Ângela Márcia.”

Meu Deus, eu comprei uma Monark vermelha, e agora? Tomara que ela não perceba, ela é tão criança. Guradei a carta, voltei a relaxar e...

- Mainha, lê a minha carta para o Papai Noel.

Uma carinha séria como se carregasse a mensagem mais preciosa do mundo estava ao meu lado.

- Que rapazinho lindo! - eu falei e li com dificuldade a letrinha infantil:

-“Papai Noel, quelo ganhá um calinho de contole remoto vemelho. Um beigo, Nâni.”

Que horror! Eu comprei um carrinho de fricção azul! Daqui para o dia de Natal minha cabeça vai dar um nó! Eu não imaginara que criança sabia escolher a marca e a cor dos objetos.

Volto a descansar e mergulho num cochilo gostoso, desses que a gente deseja nunca acordar. Mas alegria de pobre dura pouco, pois escuto uma vozinha bem longe:

- Mãe, acorda mãe!

Sinto que vou gritar de raiva e abro os olhos para a carinha rechonchuda de cabelos loiros encaracolados e a mão mais gordinha ainda agarrando um papel tão sujo de chocolate quanto a mão que o segura. Recebo mais uma correspondência para o doce velhinho, Papai Noel, sendo esta mais difícil de ler do que a outra.

- “Papai Noeu, quelo uma bola de coulo voly. Bigado. Pabiano.”

Deus do céu, eu comprei uma bola Pelé para o Fabiano e sinto que fiz tudo errado!

Não quero ficar acordada e me esforço para dormir, pois ainda falta uma que não sabe escrever e está dormindo, graças a Deus. Caio em sono profundo e sonho com brinquedos doentes em camas da UTI. Uma bicicleta Monark vermelha toma soro pelo Guidão; um carrinho de fricção azul tem vários tubos ligados aos pneus e uma bola furada respira com dificuldade pelo balão de oxigênio, lutando para encher outra vez. Que pavor! Acordei mais cansada ainda e fui brincar com a Mariana, que estava no berço. Os cachinhos loiros caem na testa e eu os arrumo com carinho. Coloco-a no colo e começo então o diálogo que nunca deveria ter começado:

- O que minha princesa vai pedir ao Papai Noel? Perguntei olhando-a nos olhos.

- Uma boneca – respondeu ela.

- Uma linda boneca morena? Voltei a interrogá-la.

- Não, lola – foi a sua resposta.

Respirei fundo e fui em frente. Afinal, ela não sabe o que diz.

- Já sei, minha linda, você quer um bebê que chora. Que tal uma que se chama Barbie?

- Não. Quelo a Suzi.

Tenho a sensação de que vou desmaiar, a vista fica turva, o suor escorre do rosto com mais intensidade do que na loja superlotada. Tenho um enorme sentimento de frustração e a sensação de que vou decepcionar quatro crianças no natal.

Espero o dia do nascimento de Jesus. Ele chega aumentando as minhas angústias que se transformam em terror e ansiedade.

24 de dezembro de um ano do passado.

As crianças escolhem as melhores roupas de dormir, tomam a bênção ao papai e à  mamãe e vão para a cama. Será que os minutos nunca vão se transformar em horas? Finalmente dormiram. Chegou a hora. Fomos tirar os presentes do porta-bagagens do carro e levar para os devidos lugares. Pensei em uma forma alegre de arrumá-los, para esconder meus enganos, e coloquei balões coloridos no guidão da indesejada Monark vermelha, bolas de gude no carrinho de fricção azul, que eu não podia transformar em carro de controle remoto vermelho; mais bolinhas de gude de todas as cores e tamanhos serviram de apoio para a triste bola Pelé, que achei parecida com a bola furada dos meus sonhos. A boneca, coitada, parecia desolada, segurando uma porção de balões coloridos, amarrados aos dedinhos tão pequenos quanto os da sua dona. Tinha apitinhos e balas em todos os brinquedos. Está terminado.

Finalmente fomos dormir, mas eu fiquei insone à espera do amanhecer, aguardando o primeiro apito soar. O apito soou e eu não consegui me mover. Parecia que meu coração queria saltar do peito, Ouvi as batidas na porta do quarto e a gritaria eufórica e parecia que todos choravam ao mesmo tempo. Levantei com dificuldade e ouvi várias frases confusas. Consegui identificar as carinhas risonhas com as marcas de sono, os cabelos despenteados e os pés descalços.

Uma montava uma Monark vermelha como se fosse a coisa mais importante do mundo, os balões batendo no seu rosto sorridente. O outro se agachava para mostrar como o lindo carro azul corria veloz. Era o Aírton Senna com seu carro de fórmula 1 invadindo o meu quarto. O outro chutava uma bola Pelé que não era negra e acertava em cheio um gol no meu coração. Mas faltava uma. Onde estava minha pequenininha? Corri para o quarto e ela, muito concentrada, passava higiapele em uma Barbie sem roupas e sem sapatos, com o cabelo molhado de um banho na pia do banheiro.

Esse foi um dos dias mais felizes da minha vida e eu guardo com a melhor das recordações.

Em sua inocência, a criança fica feliz de ser lembrada, não importa como e o que possa ganhar. Papai Noel esteja sempre presente em cada lar e que embaixo da cama de cada criança dormindo exista sempre uma lembrança do natal e no quarto ao lado, pessoas que os amarão muito, por toda a sua vida.
...

Esta não é uma obra de ficção, qualquer semelhança com personagens reais foi meramente proposital.

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