quinta-feira, 4 de agosto de 2011

MINHA PÃE E MEU(S) PAI(S)



05. Pais em "J"

Um dia chegou à casa da gente (aí não sei de dizer qual!) uma carta endereçada pro Papai. Era um convite para uma festa de premiação dos melhores alunos do Colégio Lourenço Filho e o Alexandre iria ser homenageado por ter sido classificado em sétimo lugar na Olimpíada Cearense de Matemática, feito inédito no colégio. O curioso então era que o Papai não morava com a gente há anos, e na verdade já não tínhamos contato com ele há algum tempo.

Vale ressaltar que, também eu e Ângela estávamos sempre em destaque nas respectivas turmas, e nossas notas eram excelentes. Quando em uma conversa da minha mãe com o então diretor do colégio e ex-colega de turma nesta mesma escola, Antonio Filgueiras Lima Filho, ela comentou da separação justificando a ausência do Papai na festa. Ele ficou mais impressionado com o nosso desempenho, sendo criados sem um pai em casa.

O fato é que, pelo menos no meu caso, eu tive apoio por todos os lados. Se meu pai estava distante, sempre tive figuras paternas que o substituíram e diversos níveis e âmbitos de minha vida. Citando de quem eu já escrevi: meu irmão Alexandre em todo o meu crescimento, o Vovô Jesus no curtíssimo tempo que tive com ele, o Tio Roberto que ainda faz este papel; e citando de quem irei escrever agora, estas figuras extremamente diferentes em seu jeito de ser que também contribuíram na formação do homem, do profissional, do pai que sou hoje: o Tio Jeovani, o Tio Peba (Júlio Sérgio) e o Jáder.

Jeovani

Desde muito novo que eu sou curioso. Não aquela curiosidade da vida alheia, do que fulano disse ou fez com sicrano, mas daquela ânsia de conhecimento difuso de tudo e mais um pouco, de fazer coisas, construir, criar, usar ferramentas, aprender.

Quando voltei com 12 anos de minha temporada em Manaus na casa do Tio Roberto, achei no Tio Jeovani, irmão do meu pai, que morava na casa vizinha à de minha avó Rosália, agora viúva, uma inesgotável fonte de saber e uma incansável disponibilidade em me ensinar.

Eu devia ser a mais pentelha das crianças, ou pré-adolescente, como se diz hoje em dia; naquela época ainda éramos somente crianças. Eu amanhecia e ia ver no que ele estava trabalhando. Fosse em seu pioneirismo (ao menos no meu universo) em computação, e não existia essa história de mouse, telas coloridas e CPU incrementadas; fosse na sua criação caseira de codornas, com viveiros no quintal e incubadeiras caseiras em caixas de isopor que chocavam os ovinhos no calor da lâmpada incandescente; fosse num conserto qualquer, lá estava eu curiando, aprendendo, perguntando, vendo no que eu podia ajudar.

Sempre corria pra lá manhãs de corrida de Fórmula 1, que ia assistir com ele e torcer, primeiro pelo Nelson Piquet e depois pelo Airton Senna até ele morrer numa curva fatídica.

Gostava de juntar as crianças todas da rua ao seu redor e fazer gincanas em que tínhamos que soletrar a maior palavra da língua portuguesa, ou descobrir charadas, ou trazer objetos inusitados enquanto tomava uma dose de Rum Montilla com Coca-cola. Na páscoa escondia chocolates na casa de praia só pelo simples prazer de nos ver eufóricos fuçando atrás das plantas e saindo de lá triunfantes com um batom garoto nas mãos!

Acho que me liguei tanto ao Tio Jeovani numa época de minha vida que cheguei a incomodar a Tia Taís. Talvez por estar tirando a atenção de direito dos seus filhos. Mas eu era que nem cachorrinho faminto, que se chuta e ele volta. Seja pela cultura que ele me doava, seja pela figura paterna que ele me foi, e sem medo de errar, também para minhas irmãs ngela e Mariana, Tio Jeovani tem minha eterna gratidão e admiração.

Júlio

Lá pelos meus catorze anos, o Tio Júlio Sérgio, ou Tio Peba, como todos nós o chamávamos, viu alguns de meus desenhos e me chamou pra trabalhar com ele na fabriqueta de serigrafia que ele montara no depósito no quintal da Vovó Valderez.

Achei maravilhoso o reconhecimento e a possibilidade de vir a tornar o desenho num trabalho. Ele me fez ler apostilas de silkscreen (que eu morria de preguiça) e treinar pintura a mão em camisas. Desenvolvi absurdamente minhas habilidades e foi através dele que tive meus primeiros empregos como desenhista e formatador de textos de cartões de aniversário, namorados, mães, natal etc., tudo em LetraSet, quando decalcávamos letrinha por letrinha; depois fazendo arte-final numa fábrica caseira de adesivos, e por aí fui.

Mais na frente, já na faculdade de arquitetura, me iniciou no COREL e outros programas de desenho no escritório de serviços em computação do Tio Jeovani.

Dos dez irmãos do meu pai, era tratado uma espécie de ovelha-negra da família, mas não fosse somente este pequeno-grande empurrão em direção à profissionalização do meu desenho, Tio Peba era também a figura da família do papai que me chamava no canto e conversava comigo as besteiras que eu fazia, me dava conselhos e colocava o caminho correto na frente dos meus olhos com letras graúdas no seu jeito direto dele de falar; nunca deixou chegar a mim nenhuma das “falhas” de que o acusavam o resto da família.

Outro dia lhe contando o quanto lhe era grato, ele me disse que aquilo tudo tinha tido um valor muito maior para mim que pra ele, que eu o estava supervalorizando. Mas não é assim mesmo?

Jáder

Quando tinha dezesseis pra dezessete anos minha mãe casou de novo. Sabia que mais cedo ou mais tarde isso iria acontecer, mas não esperava uma ligação tão forte com o seu segundo marido como a que eu tive.

Jáder era puro carinho e era uma figura agradabilíssima de se conversar. Ele era o melhor amigo de minha mãe. Assumiu a paternidade de cada um de nós quatro na medida exata que nós permitimos isso, e eu creio ter sido o que mais o acolheu como tal.

Era uma paternidade diferente, era quase como um irmão bem mais velho, que quase não poderia ter idade de ser meu pai. Íamos ao estádio frequentemente e juntos nunca vimos o Ceará perder. Eu também ia regularmente com ele e a mamãe ao cinema, lanchonetes, pizzarias e bares, curtindo estarmos juntos.

O casamento não durou muito, mas me proporcionou um ambiente tranquilo e familiar numa das fases mais confusas da vida de um jovem, a preparação para o Vestibular.

Eu estava passeando em São Luís, vendo a cidade em que nasci com olhos arquitetônicos e visitando o meu pai quando fiquei sabendo em um telefonema com a mamãe, direto de um orelhão no Convento das Mercês, que o Jáder acabar de morrer de complicações geradas pela AIDS.

Perdi aí não só uma de minhas referências paternas, mas um dos melhores e mais dedicados amigos que já tive.

...

E foi mais ou menos nesta época que eu conheci meu pai, de verdade.