quinta-feira, 4 de agosto de 2011

MINHA PÃE E MEU(S) PAI(S)



05. Pais em "J"

Um dia chegou à casa da gente (aí não sei de dizer qual!) uma carta endereçada pro Papai. Era um convite para uma festa de premiação dos melhores alunos do Colégio Lourenço Filho e o Alexandre iria ser homenageado por ter sido classificado em sétimo lugar na Olimpíada Cearense de Matemática, feito inédito no colégio. O curioso então era que o Papai não morava com a gente há anos, e na verdade já não tínhamos contato com ele há algum tempo.

Vale ressaltar que, também eu e Ângela estávamos sempre em destaque nas respectivas turmas, e nossas notas eram excelentes. Quando em uma conversa da minha mãe com o então diretor do colégio e ex-colega de turma nesta mesma escola, Antonio Filgueiras Lima Filho, ela comentou da separação justificando a ausência do Papai na festa. Ele ficou mais impressionado com o nosso desempenho, sendo criados sem um pai em casa.

O fato é que, pelo menos no meu caso, eu tive apoio por todos os lados. Se meu pai estava distante, sempre tive figuras paternas que o substituíram e diversos níveis e âmbitos de minha vida. Citando de quem eu já escrevi: meu irmão Alexandre em todo o meu crescimento, o Vovô Jesus no curtíssimo tempo que tive com ele, o Tio Roberto que ainda faz este papel; e citando de quem irei escrever agora, estas figuras extremamente diferentes em seu jeito de ser que também contribuíram na formação do homem, do profissional, do pai que sou hoje: o Tio Jeovani, o Tio Peba (Júlio Sérgio) e o Jáder.

Jeovani

Desde muito novo que eu sou curioso. Não aquela curiosidade da vida alheia, do que fulano disse ou fez com sicrano, mas daquela ânsia de conhecimento difuso de tudo e mais um pouco, de fazer coisas, construir, criar, usar ferramentas, aprender.

Quando voltei com 12 anos de minha temporada em Manaus na casa do Tio Roberto, achei no Tio Jeovani, irmão do meu pai, que morava na casa vizinha à de minha avó Rosália, agora viúva, uma inesgotável fonte de saber e uma incansável disponibilidade em me ensinar.

Eu devia ser a mais pentelha das crianças, ou pré-adolescente, como se diz hoje em dia; naquela época ainda éramos somente crianças. Eu amanhecia e ia ver no que ele estava trabalhando. Fosse em seu pioneirismo (ao menos no meu universo) em computação, e não existia essa história de mouse, telas coloridas e CPU incrementadas; fosse na sua criação caseira de codornas, com viveiros no quintal e incubadeiras caseiras em caixas de isopor que chocavam os ovinhos no calor da lâmpada incandescente; fosse num conserto qualquer, lá estava eu curiando, aprendendo, perguntando, vendo no que eu podia ajudar.

Sempre corria pra lá manhãs de corrida de Fórmula 1, que ia assistir com ele e torcer, primeiro pelo Nelson Piquet e depois pelo Airton Senna até ele morrer numa curva fatídica.

Gostava de juntar as crianças todas da rua ao seu redor e fazer gincanas em que tínhamos que soletrar a maior palavra da língua portuguesa, ou descobrir charadas, ou trazer objetos inusitados enquanto tomava uma dose de Rum Montilla com Coca-cola. Na páscoa escondia chocolates na casa de praia só pelo simples prazer de nos ver eufóricos fuçando atrás das plantas e saindo de lá triunfantes com um batom garoto nas mãos!

Acho que me liguei tanto ao Tio Jeovani numa época de minha vida que cheguei a incomodar a Tia Taís. Talvez por estar tirando a atenção de direito dos seus filhos. Mas eu era que nem cachorrinho faminto, que se chuta e ele volta. Seja pela cultura que ele me doava, seja pela figura paterna que ele me foi, e sem medo de errar, também para minhas irmãs ngela e Mariana, Tio Jeovani tem minha eterna gratidão e admiração.

Júlio

Lá pelos meus catorze anos, o Tio Júlio Sérgio, ou Tio Peba, como todos nós o chamávamos, viu alguns de meus desenhos e me chamou pra trabalhar com ele na fabriqueta de serigrafia que ele montara no depósito no quintal da Vovó Valderez.

Achei maravilhoso o reconhecimento e a possibilidade de vir a tornar o desenho num trabalho. Ele me fez ler apostilas de silkscreen (que eu morria de preguiça) e treinar pintura a mão em camisas. Desenvolvi absurdamente minhas habilidades e foi através dele que tive meus primeiros empregos como desenhista e formatador de textos de cartões de aniversário, namorados, mães, natal etc., tudo em LetraSet, quando decalcávamos letrinha por letrinha; depois fazendo arte-final numa fábrica caseira de adesivos, e por aí fui.

Mais na frente, já na faculdade de arquitetura, me iniciou no COREL e outros programas de desenho no escritório de serviços em computação do Tio Jeovani.

Dos dez irmãos do meu pai, era tratado uma espécie de ovelha-negra da família, mas não fosse somente este pequeno-grande empurrão em direção à profissionalização do meu desenho, Tio Peba era também a figura da família do papai que me chamava no canto e conversava comigo as besteiras que eu fazia, me dava conselhos e colocava o caminho correto na frente dos meus olhos com letras graúdas no seu jeito direto dele de falar; nunca deixou chegar a mim nenhuma das “falhas” de que o acusavam o resto da família.

Outro dia lhe contando o quanto lhe era grato, ele me disse que aquilo tudo tinha tido um valor muito maior para mim que pra ele, que eu o estava supervalorizando. Mas não é assim mesmo?

Jáder

Quando tinha dezesseis pra dezessete anos minha mãe casou de novo. Sabia que mais cedo ou mais tarde isso iria acontecer, mas não esperava uma ligação tão forte com o seu segundo marido como a que eu tive.

Jáder era puro carinho e era uma figura agradabilíssima de se conversar. Ele era o melhor amigo de minha mãe. Assumiu a paternidade de cada um de nós quatro na medida exata que nós permitimos isso, e eu creio ter sido o que mais o acolheu como tal.

Era uma paternidade diferente, era quase como um irmão bem mais velho, que quase não poderia ter idade de ser meu pai. Íamos ao estádio frequentemente e juntos nunca vimos o Ceará perder. Eu também ia regularmente com ele e a mamãe ao cinema, lanchonetes, pizzarias e bares, curtindo estarmos juntos.

O casamento não durou muito, mas me proporcionou um ambiente tranquilo e familiar numa das fases mais confusas da vida de um jovem, a preparação para o Vestibular.

Eu estava passeando em São Luís, vendo a cidade em que nasci com olhos arquitetônicos e visitando o meu pai quando fiquei sabendo em um telefonema com a mamãe, direto de um orelhão no Convento das Mercês, que o Jáder acabar de morrer de complicações geradas pela AIDS.

Perdi aí não só uma de minhas referências paternas, mas um dos melhores e mais dedicados amigos que já tive.

...

E foi mais ou menos nesta época que eu conheci meu pai, de verdade.


segunda-feira, 25 de julho de 2011

MINHA PÃE E MEU(S) PAI(S)


04. Roberto

Numa bela noite de formatura a long, long time ago... Após a entrega dos diplomas (aí nem lembro se a formatura era minha ou do Alexandre), tirávamos algumas fotos no canto entre a Concha Acústica e o prédio da Reitoria da UFC, quando o Tio Roberto reconheceu um colega de longa data na sessão fotográfica ao lado. Fulano! Quanto tempo! A formatura é do meu filho! Essa aqui é a Marúsia, minha irmã, mãe dele! A confusão só durou alguns segundos até que ele explicasse que nos tinha como filhos, eu e Alexandre.

O momento podia passar esquecido no tempo se não ilustrasse algumas características inerentes ao meu tio: a primeira é a memória; reconhece pessoas que há muito não vê e lembra-se de detalhes e datas com precisão; a segunda é que, mesmo sendo muito sério, ele adora gerar este tipo de confusão; pegadinhas (vide Brincadeirinha de susto), piadas sutis (ou nem tanto), gozações etc., sempre foram parte de sua personalidade; a terceira, e mais importante neste contexto, é como ele assumiu pública e intimamente nossa paternidade, minha e do Alexandre, desde que fomos morar em Manaus com ele.

O Alexandre, além de ter nascido primeiro, ganhou seu apadrinhamento católico. Eu vim depois, de carona, e conquistei meu espaço especial no seu coração. Longe de ter ciúmes do padrinho de meu irmão, só me ficava a gratidão daquela dedicação com a gente, da igualdade de tratamento entre nós e seu filho Rogério, único primo da minha idade.

A impossibilidade dele de gerar filhos o fez ter vários filhos assumidos: Rogério e Camila adotados durante seu primeiro casamento, com a Tia Fafá; Daniel e Dana, filhos da Tia Cristina, com quem se casou pela segunda vez; eu e Alexandre de casamento nenhum! Fora aqueles inumeráveis que ele ajuda como se fosse um padrinho.

Rigoroso em nossa criação, ele nos cobrava sempre algo mais, como no dia em que apresentei orgulhoso um boletim coberto de notas 10 e ele quis saber a razão daquela solitária nota 9! Se não fossem os seus olhos que sorriam sozinhos, eu poderia até ficar chateado.

Nesta época morávamos com ele em Manaus. Fomos por necessidade, uma vez que minha mãe tinha dificuldades em sustentar sozinha nossa família de “pãe” e quatro filhos, mas curti como a mais longa férias de minha vida, como tivesse ganhado uma oportunidade incrível de um lar completo como só vim ter anos depois, como se eu tivesse mais um irmão, o Rogério, mais uma mãe supercarinhosa, a Tia Fafá, e mais um pai como poucos.

Tenho saudades do dia do churrasco, do dia da feijoada, dos passeios, dos cafunés...
Mesmo quando voltamos pra Fortaleza, a saudade de nossa mãe e nossas irmãs quase espocando o peito (a trilha sonora era encabeçada por Elba Ramalho cantado De Volta pro Aconchego), ele nunca deixou de olhar por nós.

Fomos crescendo e o respeito dele com a gente, com os profissionais que nos formamos, como irmãos maçons que nos tornamos, com a família que nós formamos, cresceu em mesmo nível. O amor dele com nossos filhos é denotado no tratamento de Vovô Beto. Nada mais justo. Se meu irmão sempre foi a mais presente figura paterna, Tio Roberto foi o pai de maior referência na minha vida.

Quando me formei, curiosamente (ou não) na mesma profissão que meu pai (o biológico), foi ao meu tio que dei uma cópia de meu Projeto de Graduação. Nesta edição única, fiz uma dedicatória que não acho mais cópia alguma pra publicar, mas lá eu escrevi uma coisa que resume tudo o que eu sinto por ele: que me perdoasse se a palavra Tio não revelasse tanto amor quanto a palavra Pai.

Em duas ocasiões preparei meu coração para perder meu tio. Uma vez há dez anos quando teve câncer nos pulmões e outra vez neste ano, quando reincidiu no cérebro. Na mesma medida foi a alegria pela cura nas duas ocasiões, não sem antes sofrer ao o ver fraquinho, careca e debilitado pelo tratamento.

Fica mais tempo, Tio. Ainda precisamos do senhor pertinho, dos seus olhos que sorriem apertadinhos que nem os do Vovô Jesus, do seu beijo carinhoso na testa que me faz sentir aquele mesmo menino distraído que foi morar com o senhor em Manaus.

Fica mais tempo, Tio. Fica o suficiente pra minha filha curtir melhor o Vovô Beto, ou os filhos dela curtiram o Bivô Beto, ou até eu ficar carequinha que nem o senhor, e me dar beijos na minha testa lisinha, ou até, sei lá...

Só fica mais tempo.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

O FUSCA


– E aí, Zé! Tem fogo?

Sem nem responder, ele estica a caixa de Argos com os olhos semicerrados por causa da fumaça do Derby no canto da boca. Recebe o fósforo de volta e me pergunta:

– Já viu meu fusca novo?

O Zé era uma figura! Era, não por ter morrido, mas porque tem anos que não o vejo! Mais pra branco, barba sempre por fazer e cabelos cacheados, tinha uma dessas vozes que ribombam que você nem sabe como saiu daquelas costelas magrinhas. Era o zelador da clínica do lado do escritório de arquitetura em que eu trabalhava na Tibúrcio, e lá morava com mulher e dois filhos tão lindos que ele não cansava de dizer: – A muié diz que são meu... eu vô criano!

– O branquinho ali? Massa cara! – estranhei que ele pudesse comprar o carro.

 “É, má, foi o mininu! – já foi ele começando a explicar, como que respondendo a confusão no meu olhar. Rapaz, eu recebi meu primeiro cartão de crédito, duzento e cinqüenta conto! Sácomé pobre, disse logo:

– Muié, pega os mininu que nóis vamo fazê uma fêra!

Fumo a pé que é pertim daqui, aquele Jumbo (já era Pão de Açúcar há uns 15 anos) ali do sinal (da Des. Moreira com Anto. Sales). Chegano lá foi um prá cada lado, a muié pra direita, eu pra esquerda e os mininu correnu como uns doido. Num deu dez minuto só ouvi o papôco e o chêro de cachaça no ar!

Na mesma hora eu pensei: – Foi meus minino!

Nem precisei procurar e lá vem o segurança trazenu o mininu pelo braço com se fosse um mirim.
– Esse menino é seu? – o hômi perguntou como se ele tivesse mentinu.

– É meu mesmo, seu moço! – acho que ele acreditô só pra ter alguém pra culpá. Ele começou a contar que o mininu quebrô uma garrafa de uísque daquelas gigante que ficava no chão num negócio de ferro.

– O senhor vai ter que pagar!

– Eu nân, meu amigo! Eu num bêbo, a muié num bebe, os mininu num bebe, e eu num vô pagá nada.
– Então eu vou chamar o gerente!

– Pode chamar até o Papa! – eu mais inchado que baiacu; o uísque era mais caro que a minha fêra todinha.

Aí lá vem o gerente, de terno e gravata, cabelim no gel!

– Meu senhor, o seu filho quebrou uma garrafa de whiskey caríssima! O senhor é responsável por ele! O senhor vai ter de pagar!

–  Hômi, Seu Gerente, eu num bêbo, a muié num bebe, os mininu num bebe, e eu num vô pagá nada.
– Meu senhor, ou o senhor paga, ou a gente vai resolver na delegacia!

– E eu tenho essas opção tudinha? Então vâmu pra delegacia!

E lá fômu eu, a muié, os dois mininu, o segurança e o gerente.

– Seu Zé, o filho não é Seu? – começou o Delegado.

– A muié diz que é...

– Ele não quebrou o whiskey?

– Seu doto! Eu num bêbo, a muié num bebe, os mininu num bebe, e eu num vô pagá nada.

– Então não tem jeito, eu vou ter que fichar o senhor!

– Intão eu quero o meu a-di-vo-ga-do!

– E o senhor tem advogado? – com a maior cara de surpresa e um sorrisim de canto de boca.

Eu liguei pro advogado da clínica, chapa meu, já tinha me dito qui’eu podia chamar se precisasse. Tava era divinhanu! Contei a marmota todinha pra ele e ele disse que ia era processá os fi-du’a-égua! Eu disse pra ele: – Hômi, o que tu tirá deles nóis racha mei-a-mei!

Ele chegou lá já chei de moral! Disse que todo mercado, supermercado, banca de revista, o escambau, tem de deixá as coisa de adulto no mínimu a um metro do chão; que o gerente tinha levado criança e muié pruma delegacia, quando só precisava levá eu; que isso e aquilo; blá-blá-blá, bli-bli-bli, ... e processô o supermercado!”

– Oí o fusca! É do mininu!

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segunda-feira, 11 de julho de 2011

MARÚSIA RODRIGUES


Um Conto de Natal

Era o dia 22 de dezembro de um ano do passado.

O comércio da Rua Grande, como era conhecida a Rua Oswaldo Cruz no centro da cidade de São Luís, capital do estado do Maranhão, encontrava-se apinhado. As pessoas acotovelavam-se no balcão das lojas gritando pelas vendedoras já atordoadas pelo burburinho crescente. Mais tonta ainda estava eu, que juntamente com meu marido tentava comprar presentes de Papai Noel para nossos filhos. Após muito tempo e sacrifício, compramos uma bicicleta, um carrinho, uma bola e uma boneca, que fariam a alegria das crianças enquanto fossem novidade. Fomos então à casa de uma amiga para escondê-los até o dia da véspera de Natal. Guardamos tudo e seguimos para casa.

Ufa! Terminei e vou descansar, pensei satisfeita com missão cumprida. Deitei tranquilamente com um braço sobre os olhos, como é costume meu, e tentei relaxar. Quem dera! Alguém me toca e vejo uma gorduchinha de joelhos em cima da cama com os grandes olhos verdes sorrido de euforia. Ela me diz:
- Mãe, já fiz minha carta para o Papai Noel. Você coloca no correio?

- Claro que sim, respondi sem preocupação, pois ela já me confidenciara que queria uma bicicleta.
Peguei o papel com um sorriso, pois o mesmo continha uma única frase e vários desenhos de rosas e bonequinhas feitos por ela. Li o seguinte texto:

- “Papai Noeu, quero ganhá de prezente uma bisicleta Caloi azul. Obrigada, Ângela Márcia.”

Meu Deus, eu comprei uma Monark vermelha, e agora? Tomara que ela não perceba, ela é tão criança. Guradei a carta, voltei a relaxar e...

- Mainha, lê a minha carta para o Papai Noel.

Uma carinha séria como se carregasse a mensagem mais preciosa do mundo estava ao meu lado.

- Que rapazinho lindo! - eu falei e li com dificuldade a letrinha infantil:

-“Papai Noel, quelo ganhá um calinho de contole remoto vemelho. Um beigo, Nâni.”

Que horror! Eu comprei um carrinho de fricção azul! Daqui para o dia de Natal minha cabeça vai dar um nó! Eu não imaginara que criança sabia escolher a marca e a cor dos objetos.

Volto a descansar e mergulho num cochilo gostoso, desses que a gente deseja nunca acordar. Mas alegria de pobre dura pouco, pois escuto uma vozinha bem longe:

- Mãe, acorda mãe!

Sinto que vou gritar de raiva e abro os olhos para a carinha rechonchuda de cabelos loiros encaracolados e a mão mais gordinha ainda agarrando um papel tão sujo de chocolate quanto a mão que o segura. Recebo mais uma correspondência para o doce velhinho, Papai Noel, sendo esta mais difícil de ler do que a outra.

- “Papai Noeu, quelo uma bola de coulo voly. Bigado. Pabiano.”

Deus do céu, eu comprei uma bola Pelé para o Fabiano e sinto que fiz tudo errado!

Não quero ficar acordada e me esforço para dormir, pois ainda falta uma que não sabe escrever e está dormindo, graças a Deus. Caio em sono profundo e sonho com brinquedos doentes em camas da UTI. Uma bicicleta Monark vermelha toma soro pelo Guidão; um carrinho de fricção azul tem vários tubos ligados aos pneus e uma bola furada respira com dificuldade pelo balão de oxigênio, lutando para encher outra vez. Que pavor! Acordei mais cansada ainda e fui brincar com a Mariana, que estava no berço. Os cachinhos loiros caem na testa e eu os arrumo com carinho. Coloco-a no colo e começo então o diálogo que nunca deveria ter começado:

- O que minha princesa vai pedir ao Papai Noel? Perguntei olhando-a nos olhos.

- Uma boneca – respondeu ela.

- Uma linda boneca morena? Voltei a interrogá-la.

- Não, lola – foi a sua resposta.

Respirei fundo e fui em frente. Afinal, ela não sabe o que diz.

- Já sei, minha linda, você quer um bebê que chora. Que tal uma que se chama Barbie?

- Não. Quelo a Suzi.

Tenho a sensação de que vou desmaiar, a vista fica turva, o suor escorre do rosto com mais intensidade do que na loja superlotada. Tenho um enorme sentimento de frustração e a sensação de que vou decepcionar quatro crianças no natal.

Espero o dia do nascimento de Jesus. Ele chega aumentando as minhas angústias que se transformam em terror e ansiedade.

24 de dezembro de um ano do passado.

As crianças escolhem as melhores roupas de dormir, tomam a bênção ao papai e à  mamãe e vão para a cama. Será que os minutos nunca vão se transformar em horas? Finalmente dormiram. Chegou a hora. Fomos tirar os presentes do porta-bagagens do carro e levar para os devidos lugares. Pensei em uma forma alegre de arrumá-los, para esconder meus enganos, e coloquei balões coloridos no guidão da indesejada Monark vermelha, bolas de gude no carrinho de fricção azul, que eu não podia transformar em carro de controle remoto vermelho; mais bolinhas de gude de todas as cores e tamanhos serviram de apoio para a triste bola Pelé, que achei parecida com a bola furada dos meus sonhos. A boneca, coitada, parecia desolada, segurando uma porção de balões coloridos, amarrados aos dedinhos tão pequenos quanto os da sua dona. Tinha apitinhos e balas em todos os brinquedos. Está terminado.

Finalmente fomos dormir, mas eu fiquei insone à espera do amanhecer, aguardando o primeiro apito soar. O apito soou e eu não consegui me mover. Parecia que meu coração queria saltar do peito, Ouvi as batidas na porta do quarto e a gritaria eufórica e parecia que todos choravam ao mesmo tempo. Levantei com dificuldade e ouvi várias frases confusas. Consegui identificar as carinhas risonhas com as marcas de sono, os cabelos despenteados e os pés descalços.

Uma montava uma Monark vermelha como se fosse a coisa mais importante do mundo, os balões batendo no seu rosto sorridente. O outro se agachava para mostrar como o lindo carro azul corria veloz. Era o Aírton Senna com seu carro de fórmula 1 invadindo o meu quarto. O outro chutava uma bola Pelé que não era negra e acertava em cheio um gol no meu coração. Mas faltava uma. Onde estava minha pequenininha? Corri para o quarto e ela, muito concentrada, passava higiapele em uma Barbie sem roupas e sem sapatos, com o cabelo molhado de um banho na pia do banheiro.

Esse foi um dos dias mais felizes da minha vida e eu guardo com a melhor das recordações.

Em sua inocência, a criança fica feliz de ser lembrada, não importa como e o que possa ganhar. Papai Noel esteja sempre presente em cada lar e que embaixo da cama de cada criança dormindo exista sempre uma lembrança do natal e no quarto ao lado, pessoas que os amarão muito, por toda a sua vida.
...

Esta não é uma obra de ficção, qualquer semelhança com personagens reais foi meramente proposital.

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sexta-feira, 17 de junho de 2011

VOCÊ SABE JOGAR SUDOKU?



Você sabe jogar Sudoku?

Meu nome é Fabiano e eu sou viciado!

Eu sempre vi revistas e mais revistas de Sudoku nas bancas sem prestar muita atenção. Vez ou outra tinha uma página com quatro jogos clássicos nível fácil no meio das minhas palavras-cruzadas, mas nunca dei bola direito. Até experimentei um ou outro, mas desisti diante das primeiras dificuldades.

Um dia, há cerca de um ano e meio, a empresa em que eu trabalho me disponibilizou um celular. Comecei a fuxicar e notei que o modelo básico Sansung tinha somente um jogo sem possibilidade de instalação de outros: o fatídico Sudoku! Aí não tinha jeito. Fila de banco, a muié entra na farmácia e diz que volta já, meia hora sem fazer nada não é pra mim. Aprendi!

Aprendi que existe uma diferença crucial entre “saber como se joga” e “saber jogar”. Qualquer um que já se arriscou no xadrez sabe disso. A gente aprende a mexer as pedras, o cavalo anda em “L” e tal, mas quando a gente leva o primeiro cheque pastor fica pensando que alguma coisa está faltando. Jogar Sudoku tem dessas. A gente lê as regras e acha que vai ser moleza e depois de colocar uns três números... VÁPRÁPiiii QUEM DISSE QUE ESSA Piiiii ACALMA! - Notaram como estou mais comportado?

Fig. 1
Bom minha intenção com este post é demonstrar como de fato o jogo é simples, e genial em sua simplicidade. Quero ensinar o leitor a como jogar Sudoku, as regras básicas, e como se joga Sudoku, estratégias simples que deixam a leitura do jogo acessível.

Abstive-me de transcrever explicações de outras publicações pra usar uma linguagem minha. O exemplo que uso (Fig. 1) foi publicado na pg. 15, COQUETEL - SUDOKU - LIVRO 01 - EDIOURO, JOGO 32 - Clássico Fácil.

Como se Joga Sudoku

Como eu escrevi, em quaisquer palavras-cruzadas se conseguem estas regras.

Fig. 2
O jogo consiste de uma malha de NOVE LINHAS e NOVE COLUNAS, esta malha é subdividida em outra de TRÊS POR TRÊS, contabilizando NOVE CONJUNTOS. O resultado é uma malha de NOVE POR NOVE com OITENTA E UM QUADROS preenchidos ou a preencher com números (Fig. 2).

Podemos resumir as regras assim:

“Cada Base (linha, coluna ou conjunto) deve ser preenchida com números diferentes de '1' a '9'.”

Pronto! Agora você sabe como se joga. Então, como podemos traduzir isso de modo prático?

Como Jogar Sudoku

Longe de querer reinventar a roda, quero somente apresentar uma ótica pessoal da solução do jogo. Nunca li nada a respeito e o que eu estou apresentando aqui não deve ser nenhum segredo neste jogo difundido mundialmente. Não duvido que outros já tenham apresentado soluções semelhantes.

Resumi em quatro técnicas que percebi usar regularmente com a prática do Sudoku Clássico Fácil. Não achei nenhum jogo com esta descrição que não resolvesse com estas técnicas e, até agora nenhum Clássico Médio também.

TÉCNICAS

01. Cruzamento

Fig. 3
Comece escolhendo um número. Por questão organizacional, geralmente começo pelo número “1”, depois o “2”, o “3” e assim por diante até o “9”, depois recomeço pelo “1”). Ao número “1”, então! Os quadros previamente preenchidos aparecem verdes.

Podemos ver que há um número “1” no primeiro conjunto, no alto à esquerda. Se somente podemos ter um de cada número de “1” a “9” em cada base, neste conjunto já tem o número “1”, bem como nesta linha e nesta coluna (Fig. 3) que ressalto em vermelho, para indicar que nestes quadros não poderemos preencher com o número em análise.

Fig. 4
No conjunto seguinte também há um número “1”, obviamente em uma linha e uma coluna diferente do número “1” do conjunto anterior. Na figura seguinte (Fig. 4) realcei somente as linhas dos números “1” dos primeiros conjuntos. Veja que no terceiro conjunto eliminamos as possibilidades para preenchimento do número “1” somente para dois quadros.

Fig. 5
Neste momento podemos cruzar as informações. Na figura seguinte (Fig. 5) realcei também a coluna do número “1” do terceiro conjunto inferior à direita. Deste modo eliminamos um dos dois quadros restantes, e aí podemos escrever o número “1” no último quadro do conjunto, que aparece em amarelo, demonstrando que ele está em preenchimento.

Fig. 6
A maior dificuldade desta técnica é realçar estas linhas e colunas sem escrever nada no papel. Um Sudoku digital às vezes faz isso por você, mas no papel, ao fim de alguns preenchimentos a malha estará toda riscada. As casas preenchidas por mim aparecerão como verde claro.

Seguindo o mesmo raciocínio, podemos preencher outro número “1” no conjunto do meio à direita (Fig. 6) e daí você pode conferir que nenhuma outra Base terá somente um quadro livre para preenchermos com o número “1”.

Daí passamos para o número “2” e veremos que, com esta técnica, conseguiremos preencher somente mais um quadro (Fig. 7a). Já o número "3" permite que preenchemos mais dois quadros (Fig. 7b e Fig. 7c).
Fig. 7 (a - b - c)
De agora em diante ressaltarei todos os quadros eliminados em uma figura somente, e já preencherei o que for possível. Da mesma forma que aparecerão em laranja os quadros eliminados pelas casas em preenchimento (amarelas).

O número "4" não adiciona nada de preenchimento (Fig. 8a), bem como o número "5" (Fig. 8b). Já o número "6" permite preenchermos mais dois quadros (Fig. 8c).

Fig. 8 (a - b - c)
O número "7", neste ponto do jogo, permite preenchermos todos os quadros análogos (Fig. 9a). Já o número "8" não muda nada (Fig. 9b). O número "9" também permite esgotarmos os quadros idênticos (Fig. 9c).
Fig. 9 (a - b - c)
Recomeçando pelo número "1", poderemos ver que mais quadros estão preenchidos, de forma que poderemos gerar mais algumas soluções, desta vez, completando todos os nove números "1" do jogo (Fig. 10a). Poderemos preencher também mais um número "2" (Fig. 10b) e mais um número "3" (Fig. 10c).
Fig. 10 (a - b - c)
Nada com o "4" (Fig. 11a). Nada com o "5" (Fig. 11b). Mais um "6" (Fig. 11c). Note aqui que começam a rarear as possibilidades de preenchimento.

Fig. 11 (a - b - c)
Com o "7" e o "9" esgotados, só resta o "8" que não vai evoluir facilmente, uma vez que só consta um no conjunto inferior direito. Agora só nos resta recomeçar e, acredite, você conseguirá terminar este Sudoku sem apelar pra qualquer outra técnica de preenchimento (Fig. 12). No máximo, uma contagem.
Fig 12
02. Contagem

É a técnica mais simples... e a mais trabalhosa também. Consiste de escolher uma Base que esteja bem preenchida, faltando poucos quadros em branco, e contar quem falta. Daí, se só faltar um número, é moleza; se faltarem dois ou mais, conferir por cruzamento de estas casas podem ser eliminadas.

Imagine que há uma linha ou coluna com três quadros em branco; dois destes quadros em um conjunto só; o número que você busca está neste conjunto o que elimina o preenchimento destes dois quadros e resumem o preenchimento ao terceiro.

O mesmo pode acontecer com cruzamentos de linhas com colunas. Não passa de uma técnica de cruzamento, mas os quadros estão espalhados ao longo da linha ou coluna. Os conjuntos ajudam bastante a eliminar quadros.

A contagem não passa de um complemento, um fechamento das outras técnicas. Dificilmente você poderá começar por ela. Identifico como uma técnica por ser necessária principalmente no término dos jogos.

03. Bases Lógicas

Nesta técnica podemos deduzir onde não estarão números a partir das simples possibilidades de preenchimento.

Partindo do mesmo jogo de Sudoku (Fig. 13a), antes de começar, podemos preencher quadros com esta técnica. Se pegarmos o número "7" poderemos ver que (Fig. 13b) no primeiro conjunto superior à esquerda, só poderemos preencher o número em questão nas duas casas amarelas. Logo, mesmo sem saber exatamente em qual quadro o número está, podemos ter certeza que ele está naquela determinada linha, eliminando quadros no conjunto do lado (Fig. 13c). Neste caso só restará uma casa possível para o número "7" no conjunto superior do meio.

Fig. 13 (a - b - c)
04. Eliminação 2x2x3

Esta técnica só poderá ser usada em situações específicas e é ligeiramente mais complicada. Neste caso, vou usar um Sudoku fictício, ou melhor, três conjuntos fictícios.

Na Fig. 14a temos uma fase intermediária de preenchimento. Na Figura 14b temos umas casas eliminadas; agora note que, no conjunto 01, temos dois quadros em branco: A e B; no conjunto 02, temos três quadros em branco: C, D e E; e no conjunto 03: F, G, H, I e J.

Observe na Figura 14c que:

- se, no conjunto 01, A ou B podem ser um número específico, digamos "5"; 

- se, no conjunto 02, C, D e E também podem ser "5";

- no conjunto 03, G, H, I e J, NÃO poderiam ser "5" e F seria obrigatoriamente "5".

Fig. 14 (a - b - c)


Isso porque trabalhamos com duas possibilidades: ou A é igual a "5", ou B é igual a "5". Veja:

Se no conjunto 01:    A = 5, 

     No conjunto 02:        C e E ≠ 5, e D = 5;

     No conjunto 03:        G, H, I e J ≠ 5, e F = 5.

Se no conjunto 01:    B = 5,

     No conjunto 02:        D ≠ 5, e C ou E = 5;

     No conjunto 03:        G, H, I e J ≠ 5, e F = 5.

Em ambos os casos a solução aponta para F=5 e por essa razão chamo a técnica de 2x2x3. Nestes casos, sempre acontecem de ter duas linhas ou colunas possíveis e dois conjuntos e no terceiro três linhas ou colunas possíveis. O número que se busca preencher não estará em nenhuma das três colunas.

Então, se você conseguiu ler até aqui, tem tudo que um jogador de Sudoku precisa: paciência!

Por favor, estejam à vontade de levantar questões, de propor variações.

Já me deparei com uns quatro problemas Nível Clássico Difícil, ou Muito Difícil ou Killer que, por falta de paciência ou por falta de experiência, não consegui concluir. Já tenho desenvolvidas outras técnicas mais complexas que, se eu conseguir colocar num papel, publicarei.

Até a próxima!

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quarta-feira, 1 de junho de 2011

MINHA PÃE E MEU(S) PAI(S)


03. Jesus

 “O Calor é causticante. O vento do deserto texano levanta a poeira da rua de terra batida que atravessa aquela pequena e perigosa cidade. Das casas de madeira pouco se nota a tinta envelhecida. A maioria tem varandas cerca de um metro mais altas que a rua, um artifício para aliviar o calor nos dias quentes e a lama nos dias chuvosos.

O som das esporas nos degraus se sobressai ao som do piano que vem de dentro do único saloon da cidade. Ele foi pra lá decidido. Este seria o dia mais importante da sua vida e ele se arriscaria pra conseguir o seu objetivo. Ele lembra o quanto ela lhe implorara pra não enfrentar o xerife e sua corja de auxiliares corruptos.

Ele abre as duas portas vai-vem belamente entalhadas segurando na parte superior com as duas mãos (acompanhamos a narração com os olhos arregalados), ouve o barulho do ambiente aumentar como que acompanhando o ritmo de seu coração. Seus olhos percorrem rapidamente o saloon lotado identificando os capatazes espalhados nas mesas. Eles se voltam pra ele, esperavam sua vinda. O burburinho diminui enquanto o pianista não interrompe o ritmo de can-can que embala as dançarinas belamente sincronizadas com as saias rodadas nas mãos chutando o ar hipnotizando a maioria dos bêbados locais.

Lá está ela! Rosália, a dançarina principal! Linda, ela o distrai por um segundo (prendemos a respiração).

Alguns atiradores levam suas mãos ao coldre e antes que consigam completar seu ato são atingidos pelas balas precisas de Jesus. A música é interrompida enquanto os clientes se jogam no chão junto com os corpos dos bandidos mortos. Ficam cinco em pé, ele e mais quatro. Ele se joga de lado enquanto a porta atrás de onde ele estava em pé meio segundo antes é cravejada de balas. Antes de atingir o chão ele alveja mais dois. Os dois restantes derrubam mesas e se protegem da mira fantástica de seu opositor. Ele aproveita pra recarregar rapidamente suas armas. Um deles, em seu nervosismo, se atira gritando num ataque suicida atirando a esmo somente pra receber um único tiro certeiro no meio da testa. A distração que ele cria permite que o xerife acerte um tiro na coxa esquerda do meu avô (ele nos mostra a cicatriz perfeitamente redonda), mas revida no peito todas as balas que restavam no tambor de seus dois colts.

Ele recarrega novamente suas armas, se levanta calmamente e olha ao redor. O silêncio é completo. Ele só ouve o som de sua própria respiração. Procura por ela no palco no aglomerado de saias que tremem num cantinho. Ela levanta a cabeça e olha pra ele com os olhos cheios de lágrimas, feliz dele ter sobrevivido. Ele conseguiu.

Ela se levanta devagarzinho enquanto ele manca entre as mesas em direção a ela. Ela grita - Não! (gritamos também) Com o canto do olho ele percebe o movimento do barmam levantando uma doze que não teve oportunidade de disparar. A bala trespassou seu olho abrindo um rombo na parte de trás de sua cabeça e pinta o espelho com o sangue do último dos vilões.

Pega Rosália no colo e sai lentamente do saloon, sobe em seu corcel com ela e calvagam à luz do luar pra nunca mais voltar praquela cidade abandonada por Deus.”

Nunca cansamos de escutar a história de como nosso avô salvou nossa avó de um xerife opressor pra formar a bela família na qual nascemos.

Claro que floreei um pouco! Ele não dava tantos detalhes, éramos crianças, mas eu podia ver, fantasiar e enriquecer com os livrinhos de faroeste que ele colecionava e eu lia sem parar. Ele era simplesmente apaixonado por estes livros e conseguiu contagiar cada um de seus cinco filhos: Tio Marcelo, Tio Rui, Marúsia (minha mãe), Tio Roberto e Tio Léo (Leonel, que não era tanto de ler assim).

Meu avô era só carinho. Sorria e os olhos claros sumiam apertadinhos. Cuidava laboriosamente do que sobrara de seus cabelos que iam de uma orelha a outra pela nuca da cabeça brilhosa. Levava-nos regularmente, eu e Alexandre, no barbeiro atrás do bar avião. Usava invariavelmente uma camisa de tecido de botões com um bolso no peito esquerdo onde ele sempre levava uma carteira de cigarro e/ou um envelope de magnésia bisurada (arma de suas brincadeiras de cócegas); uma bermuda até acima dos joelhos e chinelas franciscanas de couro. Lá eu tentava espiar os calendários com mulheres semi-nuas pelos cantos dos olhos enquanto tinha que manter a cabeça quieta.

Outro passeio semanal era a antiga feira da Parangaba, quando era numa pracinha bem arborizada numa rua paralela à Av. José Bastos, perto de onde é hoje. A feira tinha de tudo e naquela época era legal ter passarinhos cantantes em gaiolas de madeira e arame. Lá compramos o pinheiro que adornou anos a fio a frente da casa dos meus avós. Levei-o no meu colo, numa latinha de leite, ia do banco até quase o teto do taxi. Quando pinheiro atinge a cumeeira da casa, o dono da casa morre! ouvi alguém dizer. E assim foi.

O que eu me lembro do meu avô não consegue descrever o homem que ele foi. Toda a bondade, ética, honestidade, generosidade e todos os adjetivos que o dicionário puder conter, chegaram até mim pelo que seus filhos me contaram; principalmente pela minha mãe e pelo livro do Tio Roberto, Meu Pai, Meu Amigo, Meu Irmão. Lembro do seu passinho lento, do chinelo arrastando de noite no corredor da casa, das brincadeiras com o Rex (um pequinês que ele implicava como se fosse gente), dos jogos de gamão na varanda, dele com a vovó, no finalzinho da tarde; dele botando a gente pra dormir na rede, A benção, Vô.

Mamãe conta que eu fiquei doente com pouco mais de um ano de idade. Mandaram-me para Fortaleza pra me consultar: era curuba! Vovó passava o remédio, Vovô abanava com um LP. Depois, em cada férias e após a separação, em 1981, foi quando ele foi também meu pai.

Em 1986 fomos, eu e o Nani, morar em Manaus com o Tio Roberto. Era o começo do ano. Despedi-me de minhas irmãs, despedi-me de minha mãe, de minha avó, e só comecei a chorar no colo do Vovô Jesus. Nunca mais o vi. Ele morreu em março daquele ano doente em decorrência de um malfadado cateterismo, não sem antes perder seu braço e sua sanidade.

Nunca fui supersticioso. Me recuso a acreditar em um mundo em que um pinheiro vença um velho cowboy.

Ah, vovô! Que saudades!

Que saudades!

sábado, 28 de maio de 2011

MINHA PÃE E MEU(S) PAI(S)


02. Alexandre

Meu irmão mais velho foi o primeiro a assumir um papel de figura paterna para nós, principalmente para mim, após a separação dos meus pais. Deixando de lado as picuinhas infantis e brigas comuns entre irmãos, ele procurava gerir nossas andanças, se responsabilizando por mim até praticamente eu me formar.

Veja bem, ele tinha 9 anos quando viemos pra Fortaleza. Lá em São Luis ele já guardava todos os seus trocados, que ganhávamos aguando o jardim da frente da casa, no bico de um sapato social dentro do armário da gente, um branquinho de duas portas cor de laranja. Desde pequeno se destacava pela sua organização financeira, uma espécie de economia pessoal e pão-durismo que se aplicava mais a ele mesmo do que a nós. Se precisássemos, ele estaria lá, disponibilizando todas as suas economias pra que realizássemos sonhos muitas vezes confusos.

Sendo justo, Alexandre sempre foi meio pai pra mim. O formato da família em que fui criado era muito diferente do que nossa geração como pais está formando, extremamente preocupada com uma relação íntima com seus filhos. Antigamente Pai era o provedor e nas relações com seus filhos não chegavam realmente a conhecê-los. Era mais como um direcionamento, regras e punições; o boletim do colégio, os presentes de aniversário e Natal, as saídas de fim-de-semana. As mães é que estavam lá. E no meu caso, eu tinha também meu irmão mais velho.

Ele era meu guia. Responsabilizava-se por mim. Sempre presente com sua personalidade pragmática, não nos furtávamos das pequenas brigas, das implicâncias (e pense como o caboco era implicante), com as disputas saudáveis por notas mais altas.

Os castigos eram mais severos que os atuais. Surras de cinturão ou chinelos de couro com solados de pneu, os irmão briguentos abraçadinhos de joelhos nos degraus das escadas etc. Alexandre era petulante; mamãe dava uma lapada e perguntava Quer mais? Ao que ele prontamente respondia Quero! com o choro travado nos dentes.

Lembro-me de uma vez que ficamos, eu e o Nani, apelido dele desde pequeno, de castigo em quartos separados no mesmo corredor. Sentamos na porta e começamos a jogar damas; eu jogava e empurrava o tabuleiro pra ele; ele jogava e empurrava o tabuleiro pra mim. Jogos sempre foram elos entre a gente. Numa das férias que tivemos em Fortaleza fomos visitar o Tio Peba na casinha que ele estava morando com a primeira mulher, grávida da Teté. A memória prega peças, mas eu acho que era num conjuntinho de casas cor-de-rosa pertinho da casa da Vovó Valderez na Praça da Igreja Matriz da Parangaba. Naquele dia o Tio Peba ensinava xadrez pro Alexandre na varanda enquanto eu pulava as janelas como todo bom menino de 5 ou 6 anos de idade. Mais tarde Alexandre me ensinaria o jogo que nos proporcionaria milhares de horas de diversão entre nós; as minhas cada vez menos raras vitórias enquanto crescíamos premiavam a paciência fantástica que o Alexandre tinha em jogar com alguém que no começo não gerava um real desafio.

Alexandre era extremamente dedicado aos estudos. De vez em quando jogava com a gente, mas eu não perdia uma pelada de rua, um vôlei no calçamento com a rede armada de um poste pro outro, saía com os garotos da rua, andava de bicicleta por aí. Não deixava de fazer o que era pra ser feito, tirava boas notas e tudo, mas o Alexandre era obstinado.

Teve um ano que ele foi morar com o Tio Roberto em Manaus. Eu fiquei desolado. A dupla estava separada. Minhas notas decaíram, minha mãe teve que sentar comigo pra estudar História pra prova de recuperação. Foi o pior ano da minha curta vida até então. No ano seguinte eu fui pra Manaus também, e aí ficou tudo bem.

Quando viemos morar em Fortaleza novamente, pingávamos da casa da Vovó Valderez para o apartamento na Aguanambi com a mamãe ou para a casa da Vovó Rosália na Parangaba. Morávamos algum tempo em cada lugar. Andávamos sozinhos de ônibus pra cima e pra baixo. Quando estávamos na casa da Vovó Valderez, íamos a pé pro colégio mais de vinte quarteirões de distância pra poupar os trocadinhos das passagens. Quando estávamos na Vovó Rosália íamos de ônibus mesmo e juntávamos aquelas fichas coloridas que recebíamos para a contagem de passagens e que serviam pro Vovô Jesus jogar pôquer com os filhos. Juntamos até mesmo depois de ele morrer. Eu fiquei com as fichas do vovô até que uma empregada bem-intencionada resolveu que elas mereciam ser lavadas com água fervendo.

Fazíamos sozinhos os pagamentos pra mamãe no centro da cidade. Com o troco sempre íamos ao cinema, seja o São Luís, o Diogo ou o Fortaleza. Às vezes víamos mais de um filme. Cinema era outro de nossos elos, e foi isso que nos levou anos depois a investir numa malfadada locadora de vídeo. A dívida que angariamos daí foi assumida pelo Alexandre e ele passou um tempão pagando sozinho com o dinheiro que juntava de seu trabalho.

Quando fui crescendo notei o quanto meu irmão perdera da própria infância em prol da necessidade de absorver mais responsabilidades conosco, comigo, com nossas irmãs e com minha mãe depois da separação dela com nosso pai. Era como se alguém tivesse dito pra ele que agora ele era o Homem da Casa e ele assumiu isso com toda a sua alma. Seu amadurecimento neste sentido era palpável como era palpável como ele não se deixava magoar. Raramente eu via meu irmão chorar. Essa dureza e distanciamento eu não tive e quando chegamos à adolescência eu pude contribuir um pouco com conselhos pro meu irmão mais velho. A relação dele com crianças é tão envolvente que acho que isso é parte de uma busca da infância mal aproveitada.

Quando se formou me chamou de lado e disse que deveríamos alugar um apartamento pra nós dois e assim fizemos. Eu ganhava dois salários mínimos, um eu entregava na mão dele, o outro eu usava pras passagens de ônibus pra faculdade, pra cervejinha e uma viagem ou outra. Quando o dinheiro apertou a gente chamou o Vladimir pra ocupar o quarto que tínhamos vago no apartamento. Um ano depois conheci Letícia e fui morar com ela.

Pela primeira vez na vida andei independente do meu irmão, meu primeiro pai substituto.

domingo, 8 de maio de 2011

MINHA PÃE E MEU(S) PAI(S)


Em homenagem ao dia das mães resolvi contar mais um pouquinho da minha história. A participação da minha mãe como pilar central de minha família é decisiva na formação de meu caráter e personalidade. Contar o que passamos é uma homenagem que faço à mãe inigualável que ela foi. Daí, vou falar também de todas as figuras paternas que tive com a distância do meu pai biológico. Como tudo isso dá um livro, vou escrever aos poucos, tentar colocar em ordem cronológica o resumo da epopéia que eu passei com ela e meus irmãos depois do divórcio dos meus pais.

01. Maturidade antecipada

Quando eu tinha 6 anos meus pais se separaram e eu nem notei.

No meu pequeno universo não percebi que aquilo ia acontecer e ninguém me disse que minha mãe tinha viajado pra Fortaleza definitivamente levando  ngela (9) e Mariana (2). Não sei dizer o dia exato, nem o mês, mas data aqui é o que menos importa.

Antes que achar que esta falta de lembranças específicas é um problema, eu tenho que dar os créditos aos meus pais. Suas brigas não me alcançaram. A transição foi tranqüila e natural. Mamãe veio de São Luis com as meninas no começo do ano e ficamos eu e Alexandre com o Papai até o meio do ano.

Foi uma época estranha. Outro dia mesmo me recordava das canjiquinhas que o papai fazia, das caixas tetra-pak da Parmalat que tinham uma promoção pra ganhar um macacão do Nelson Piquet na Brabham ou com fotos de crianças desaparecidas, do Toddy sabor banana (eu adorava aquilo!), do chiclete Ping-Pong no formato do cartão de futebol que vinha com ele, e por aí vai.

A vida confortável que nós tínhamos desapareceu por completo quando viemos morar em Fortaleza. Mamãe morava com os pais dela e as duas meninas. Eu e Alexandre alternávamos entre as casas de meu avós paternos e maternos. Só começamos a morar os cinco juntos, minha mãe e os quatro filhos, depois que eu adoeci de Hepatite.

Naquele momento eu estava morando na casa da Vovó Valderez, mãe de meu pai. A família inteira do lado dele cortara relações com minha mãe. As acusações eram muitas, todas advindas de um conjunto de preconceitos (as separações ainda eram mal vistas) e da cumplicidade da família com meu pai, o abandonado pela mulher. Não posso esconder que me doía ouvir os adultos falando dela ou de nós. Repetidas vezes disseram que eu e Mariana não éramos filhos de meu pai, mas frutos dos “amantes” da mamãe. Não guardo mágoas. Acreditando ou não que eu fosse da família, sempre me trataram como se fosse, e o amor que minha avó demonstra quando me vê anula tudo o que um dia eu a ouvi dizer.

Mamãe foi me buscar lá quando eu caí doente e me levou pra fazer os exames necessários. Confirmada a hepatite, nos mudamos somente eu e a mamãe para um apartamento de três quartos na Av. Aguanambi. A mobília podia ser resumida assim: uma cama em que eu dormia na suíte (mamãe dormia em uma rede ao meu lado); um estrado perto de meus pés, onde ficava uma TV 14” preto-e-branco; um frigobar e um fogão duas bocas na cozinha; e não me lembro de mais nada.

Foi nesta cama que comemorei os meus 8 anos de idade. Se não bastasse a hepatite ainda arranjei um baita de um tumor na coxa que passei anos conseguindo divisar a cicatriz; como eu passava o tempo todo deitado, isso era um complicador. Mamãe trouxe um bolo de chocolate com velinha acesa enquanto Vovô Jesus, Vovó Rosália,  ngela, Alexandre e Mariana cantavam os parabéns mantendo certa distância pra evitar o contágio. Ela escondeu o rosto quando começou a chorar e eu engoli o meu pra ela não notar o quanto eu estava triste. Naquele dia fiquei mais velho dez anos.

Meus aniversários eram sempre bem animados (com exceção do último antes da separação, que soprei a vela enterrada no arroz) e cheio de brinquedos legais. Desta vez, meus avós me deram um conjuntinho de linha ou lã (só sei que coçava o diabo!) com um calção marrom sem detalhes e uma camisa pólo do mesmo marrom com amarelo (tipo o Charlie Brown);  ngela trouxe um robozinho plástico amarelo de uns 10 cm que atirava pequenos mísseis das mãos quando apertávamos um botão nas suas costa; Alexandre me deu um carro de corrida também de plástico que encaixa em sua traseira um balão de aniversário, era só encher e soltar que o carrinho saía correndo; Mariana, um fusquinha desmontável de uns 5 cm; mamãe me deu uma resma de papel e uma caixa de lápis de cor que foram toda a minha diversão no mês que passei acamado. Lembro que não desenhava mais desde a vinda pra Fortaleza e voltei com toda força a partir daí. Acho que ganhei vários outros presentes, mas além destes, só me lembro dos dois exércitos plásticos (um verde, brasileiro, outro cáqui, vietnamita), como aqueles de Toy Story, que a Tia Taís me deu e que eu brincava em cima do gamão do Vovô.

Recuperei-me da doença na casa dos meus avós, numa cama centenária que a mamãe guarda até hoje. Minha alimentação básica era arroz-de-leite com carne picadinha. Ainda ganhei uma solitária de bônus(!) facilmente debelada com os remédios corretos.

Não lembro em que momento nós voltamos pro apartamento, com as outras crianças desta vez. Estudávamos de graça no Colégio Rachel de Queiroz. Os donos, o Tio Fleury e a Tia Maria, eram compadres dos meus pais, padrinhos da  ngela. O colégio era do outro lado da avenida onde moramos juntos aí até 1985, quando Alexandre foi morar em Manaus com o Tio Roberto; seis meses depois fui eu também. Nesta época, a mamãe precisou de ajuda pra nos sustentar. Mas esta é outra história, ou post!

domingo, 1 de maio de 2011

BRINCADEIRINHA DE SUSTO


06. Minha vez

Não posso precisar quando e onde eu comecei a gostar deste esporte. Há uma satisfação meio sádica em brincar de dar sustos. Claro que, quando se gosta de dar sustos como eu gosto, tem-se sempre que esperar o troco, que raramente vai ser anunciado. Muitas vezes ninguém precisa agir para que tu leves um susto.

Um caso clássico de levar um susto sozinho aconteceu com Letícia. Estávamos nos arrumando para o Reveillon no Gurguri, o sítio do meu pai, na serra que subimos por Redenção. Toda vez que vamos lá temos muito cuidado pra deixar as malas sempre fechadas enquanto não usamos pra não entrar nenhum inseto, gia ou coisa pior. O condicionamento é, portanto, natural, e foi ele quem fez Letícia mandar Marina me chamar correndo no quarto. Pai, a mamãe tá com um problemão! Ô diabos! Corri e, chegando lá, Letícia estava segurando a lateral das calças novas com tanta força e pavor que eu também me assustei. Tem um bicho aqui! Um bicho mordedor! Como é que eu ia saber o que era se ela teimava em não soltar? Baixei as calças dela enquanto ela segurava o Bicho Mordedor. Aí ela soltou e eu pude ver uma daquelas etiquetas magnéticas antirroubo costurada na parte interna das calças. Depois desta, toda etiqueta que incomoda nós dizemos que vamos cortar o Bicho Mordedor!

Um dia eu cheguei em casa com meu irmão no começo da noite e estava faltando luz na região. Morávamos numa casa assombrada na Vila Betânia. O leitor pode até pensar que eu estou brincando. Assombrada!? Tu não estavas lá, quem conhecia a casa tinha calafrios constantes, principalmente no quartinho dos fundos. Bom, se a casa era aterrorizadora até de dia, imagine na mais completa escuridão. Acendemos uma vela, armamos o tabuleiro de xadrez, que não dependia de energia pra gente se divertir e eu fui trocar de roupa. Não levei velas comigo. A luz bruxuleante que vinha da sala seria o suficiente. Tirei os sapatos e empurrei abrindo a porta do quarto com a mão pra tirar as calças. Elas iam nos joelhos e a porta começa a fechar quando eu tiro a mão. Hum. Empurro mais forte e solto quando começo a tirar o primeiro pé. A porta fecha com toda a força em cima de mim. Ahhhhhhhhh! Pulo num pé só pra fora do quarto e BLAM! A porta fecha num estrondo. Baxim! O que houve! Eu abro a porta que resiste um pouco e encontro o vulto da tábua de engomar de madeira no chão. Aí eu explico pra ele como a tábua, na hora que eu empurrei a porta, saiu de seu ponto de equilíbrio tendo empurrado também os seus pés, e uma tábua de engomar (destas antigas de madeira SUPERPESADA que guardamos dobradas em pé) me deu um dos maiores sustos que levei na minha vida. Aí foi a vez do Alexandre se acabar de rir de mim, e eu também.

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BRINCADEIRINHA DE SUSTO


05. Aracnofóbicos

Aracnofóbicos são um prato cheio. Hehe! E pra minha sorte, tenho dois amigos que sofrem deste mal, e o melhor, amigos o suficiente pra eu poder fazer das minhas repetidas vezes sem que eles me dêem uma porrada e nunca mais falem comigo.

O primeiro foi o Cláudio. Ele conta que tem uma vaga lembrança de, quando pequeno, acordar com uma caranguejeira andando calmamente no pescoço dele; ele imóvel, o pescoço ardendo, sem conseguir gritar nem fazer nada. Isso foi na casa dos pais dele no Bom Jardim, e foi pra lá que eu levei o K7 quando aluguei o recém chegado na locadoras, Arachnophobia. Se eu tenho pena? Éééééééé... um pouquinho, lá no cantinho à esquerda do ventrículo direito, pode ser. Eu senti mais-ou-menos quando eu construí uma aranha de Bombril; ou quando eu o convenci a assistir o filme totalmente à contragosto; quando eu notei os nós dedos deles brancos na mão mulata de tanto apertar o assento da cadeira; quando escorreu o suor frio pelo canto da testa... Preparação, paciência, e na hora que o Jeff Daniels entra num celeiro atrás do ninho, a aranha pula da minha mão no pescoço dele! O grito que se seguiu me matou de vergonha. Ele parou, olhou pra mim com os olhos semicerrados, e eu tive outra canseira pra convencer ele a ver o filme até o fim. Era o mínimo que eu podia fazer.

O Dráulio é um cába-macho pernambucano que perde a compostura quando se trata de aranhas. Não tem nenhuma historinha traumática pra contar e isso porque ele sozinho daria uma coluna de histórias pra contar. Havíamos montado um escritório juntos com meu pai. No dia anterior Marina havia ganho uma teia de nylon com diversas aranhazinhas de plástico que não enganariam um velho míope, mas conhecendo a figura rapidamente engendrei a pegadinha; peguei uma das pretinhas e um pouco de teia. Chegamos mais cedo, coloquei a bichinha debaixo do teclado do computador dele e a teia saindo de lado. Simples: ele vê a teia, puxa e vem a aranha. Não pude acreditar que na hora que ele chegou o papai estava vendo um vídeo no YouTube sobre um concurso de cassino onde ganhava uma ferrari quem comesse uma aranha-escorpião viva! Eu, Olhaí, Dráulio! Ele, Eu morria de fusquinha. Concordei. Ele sentou, ligou o PC  e começou a trabalhar. Mas que porra, vou ter de ajudar. Que mesa suja cara, limpa esse teclado aí. Ele levantou e soltou num estrondo e empurrou a cadeira de rodinhas batendo de costas na parede do outro lado da sala. Caímos todos na gargalhada, eu, Letícia e até o papai. Mesmo depois de ver a aranhazinha plástica ele ainda se assustava com ela por ali por cima da mesa.

Pura maldade? Nãaah! Tratamento psicológico intensivo. Se eles estão curados? Venhamos e convenhamos, eu sou um bom arquiteto.

BRINCADEIRINHA DE SUSTO



03. Seguindo os passos

Eu e meu irmão mais velho, o Alexandre, seguimos o mesmo rumo. Nossas vítimas preferidas eram obviamente a Ângela e a Mariana, nossas irmãs respectivamente mais velha e mais nova. Entre as manias que herdaram de minha mãe estão o nojo de cebola e pavor de baratas. Não escapei muito do primeiro nem do segundo.

Uma vez, mexendo na mochila da Mariana, uma barata saiu de lá, subiu pelo meu braço e entrou na manga da minha camisa. Corri aos pulos pelo corredor da casa da Vovó Rosália tirando a camisa de botões pela cabeça diante de uma plateia superdivertida. Ok, deixe estar.

Entrou uma barata na sala da vovó. Nesta época morávamos todos lá. Eu, minha mãe, minha avó, Tio Léo e meus três irmãos. Rapidamente a pestinha sumiu. Alexandre me chama no canto. Pegamos uma borracha daquelas antigas de duas cores, azul de um lado e vermelha do outro, amarramos uma linha de costura preta da minha vó e fomos lentamente pra trás do sofá no meio da sala onde estavam as duas meninas assistindo à novela. Alexandre “voou” a borracha diante de seus olhos enquanto eu gritei Olha a barata voadora! Gritos e escândalos rápidos e eficientes. Estávamos só engatinhando.

04. Sem querer

O Yuri vai ter de me perdoar mas vou ter de contar o que deve ter sido o susto mais efetivo sem querer que já dei em alguém na vida.

Morei bastante tempo na casa da D. Valderez, minha avó paterna, no centro da cidade. Morava também com ela minha Tia Rita Helena e meu primo Yuri, com uns dez anos de idade na época. Nesta noite dormiu lá em casa, no meu quarto, que era o de hóspedes, a Tia Auri, uma velha que devia ter uns cento e cinquenta anos e roncava com um trator de cento e cinquenta anos. O Yuri, que era bem rechonchudinho, arranjou um par de pedaços de antenas de alumínio e resolveu usar de baquetas. Ele batucava em tudo. Eu fui deitar cedo que tinha aula no primeiro horário da faculdade no dia seguinte. A Tia Auri ROOOONC! O Yuri BATE-BATUQUE-BATE-BATUCA! E eu nada de dormir, puto! Aí eu ouço Terezinha, vamos comigo ao banheiro? Como toda criança mimada que tem medo de escuro, o menino pedia pra Secretária o acompanhar ao banheiro e ficar do lado de fora da porta, que era vizinha da porta do meu quarto, que ficava nos pés da cama onde eu estava deitado. Até aí não havia nenhum problema. Só que o fi-da-minha-tia resolveu batucar todas as portas do corredor até chegar no banheiro, uma artimanha pra espantar o medo, penso. PROTOPOC na primeira porta. Yuri, tem gente dormindo! E a Terezinha foi devidamente ignorada. PROTOPOC na segunda porta. Eu sentei na beira da cama e segurei o trinco e abri abruptamente a porta e botei só minha cara pra fora e “gritei” baixo e grosso, Pára com isso seu pôrra! E fechei a porta. Foi tudo muito rápido. Não tinha intenção de lhe assustar mas de apenas parar com o barulho. O Yuri estava com as duas mãos erguidas pronto pra batucar na porta do meu quarto quando eu o interrompi. Ele se encolheu com um grunhido UNNHH... já começando a chorar e se mijar ali mesmo nas calças. A Terezinha, se mijando também num misto de choro e riso, Não tem graça não, Fabiano! Não consegui reprimir o riso enquanto eu tentava novamente dormir. Não houve um único batuque sequer o resto da noite.

BRINCADEIRINHA DE SUSTO


02. Coisa de família

Vovô Jesus já fazia das dele. Cansei de tirar as bolinhas de alumínio das embalagens de Magnésia Bisurada de dentro da camisa ou das calças que o pai da minha mãe colocava furtivamente. Outra clássica era fazer um rolinho com supracitado aluminiozinho e riscar o pé da gente quando a gente já está deitado na rede. Ainda vejo o sorriso dele com os olhinhos apertados no rosto do Tio Roberto, outro legítimo descendente de assustadores de ocasião.

Mamãe conta uma que ele aprontou, com a conivência dela, claro. Nesta época morávamos em São Luís numa casa projetada pelo meu pai. Uma casa relativamente grande, principalmente pra alguém que como eu tinha por volta de um metro de altura. Ela tinha três níveis: no inferior, nível do quintal, garagem acessada por rampa da rua até o lado da sala de jantar, cozinha e serviço; jardins, acesso de pedestre, sala de estar e lavabo no nível da rua; e quartos e banheiros no nível superior. Quando a noite caía, nos reuníamos todos na sala de jantar onde ficava a TV. Papai chegava do trabalho e nos escondíamos pra não ir buscar seus chinelos no seu quarto, o último do corredor, duas escadas depois, morrendo de medo do escuro que reinava no resto da casa deserta. Esse medo contagiou a “póbi” da secretária que vou chamar aqui de Toinha (não me lembro o nome dela). Na noite fatídica, o Tio Roberto, então com pouco mais de vinte anos, planejou a peça. Toinha, me arranja um copo d’água gelada e depois pega lá em cima os meus chinelos. Prestativa, ela foi cumprir a primeira tarefa. Tio Roberto sobe ao quarto de minha mãe, coloca o chapéu de Bumba-meu-Boi de minha irmã, que era adornado por um espelho no meio da testa e umas fitas barulhentas caindo dos dois lados. E lá ele fica nas sombras esperando a Toinha que vem devagarzinho e olhando torto pros lados. Toiiiiinhaaaaa! Sacode a cabeça, as fitas chacoalhando, o espelho brilhando no escuro. A moça pára olhando pra ele. E lá fica. Estática. Muda. Pálida. Não dá um pio. Toinha, sou eu, o Roberto! nervoso com o estado dela. Nada. Marúsia, acode que a mulher surtou! Água com açúcar, senta a moça, tapinha no rosto e tudo bem. No dia seguinte ela pediu pra ir-se embora. O susto saiu pela culatra.