quarta-feira, 1 de junho de 2011

MINHA PÃE E MEU(S) PAI(S)


03. Jesus

 “O Calor é causticante. O vento do deserto texano levanta a poeira da rua de terra batida que atravessa aquela pequena e perigosa cidade. Das casas de madeira pouco se nota a tinta envelhecida. A maioria tem varandas cerca de um metro mais altas que a rua, um artifício para aliviar o calor nos dias quentes e a lama nos dias chuvosos.

O som das esporas nos degraus se sobressai ao som do piano que vem de dentro do único saloon da cidade. Ele foi pra lá decidido. Este seria o dia mais importante da sua vida e ele se arriscaria pra conseguir o seu objetivo. Ele lembra o quanto ela lhe implorara pra não enfrentar o xerife e sua corja de auxiliares corruptos.

Ele abre as duas portas vai-vem belamente entalhadas segurando na parte superior com as duas mãos (acompanhamos a narração com os olhos arregalados), ouve o barulho do ambiente aumentar como que acompanhando o ritmo de seu coração. Seus olhos percorrem rapidamente o saloon lotado identificando os capatazes espalhados nas mesas. Eles se voltam pra ele, esperavam sua vinda. O burburinho diminui enquanto o pianista não interrompe o ritmo de can-can que embala as dançarinas belamente sincronizadas com as saias rodadas nas mãos chutando o ar hipnotizando a maioria dos bêbados locais.

Lá está ela! Rosália, a dançarina principal! Linda, ela o distrai por um segundo (prendemos a respiração).

Alguns atiradores levam suas mãos ao coldre e antes que consigam completar seu ato são atingidos pelas balas precisas de Jesus. A música é interrompida enquanto os clientes se jogam no chão junto com os corpos dos bandidos mortos. Ficam cinco em pé, ele e mais quatro. Ele se joga de lado enquanto a porta atrás de onde ele estava em pé meio segundo antes é cravejada de balas. Antes de atingir o chão ele alveja mais dois. Os dois restantes derrubam mesas e se protegem da mira fantástica de seu opositor. Ele aproveita pra recarregar rapidamente suas armas. Um deles, em seu nervosismo, se atira gritando num ataque suicida atirando a esmo somente pra receber um único tiro certeiro no meio da testa. A distração que ele cria permite que o xerife acerte um tiro na coxa esquerda do meu avô (ele nos mostra a cicatriz perfeitamente redonda), mas revida no peito todas as balas que restavam no tambor de seus dois colts.

Ele recarrega novamente suas armas, se levanta calmamente e olha ao redor. O silêncio é completo. Ele só ouve o som de sua própria respiração. Procura por ela no palco no aglomerado de saias que tremem num cantinho. Ela levanta a cabeça e olha pra ele com os olhos cheios de lágrimas, feliz dele ter sobrevivido. Ele conseguiu.

Ela se levanta devagarzinho enquanto ele manca entre as mesas em direção a ela. Ela grita - Não! (gritamos também) Com o canto do olho ele percebe o movimento do barmam levantando uma doze que não teve oportunidade de disparar. A bala trespassou seu olho abrindo um rombo na parte de trás de sua cabeça e pinta o espelho com o sangue do último dos vilões.

Pega Rosália no colo e sai lentamente do saloon, sobe em seu corcel com ela e calvagam à luz do luar pra nunca mais voltar praquela cidade abandonada por Deus.”

Nunca cansamos de escutar a história de como nosso avô salvou nossa avó de um xerife opressor pra formar a bela família na qual nascemos.

Claro que floreei um pouco! Ele não dava tantos detalhes, éramos crianças, mas eu podia ver, fantasiar e enriquecer com os livrinhos de faroeste que ele colecionava e eu lia sem parar. Ele era simplesmente apaixonado por estes livros e conseguiu contagiar cada um de seus cinco filhos: Tio Marcelo, Tio Rui, Marúsia (minha mãe), Tio Roberto e Tio Léo (Leonel, que não era tanto de ler assim).

Meu avô era só carinho. Sorria e os olhos claros sumiam apertadinhos. Cuidava laboriosamente do que sobrara de seus cabelos que iam de uma orelha a outra pela nuca da cabeça brilhosa. Levava-nos regularmente, eu e Alexandre, no barbeiro atrás do bar avião. Usava invariavelmente uma camisa de tecido de botões com um bolso no peito esquerdo onde ele sempre levava uma carteira de cigarro e/ou um envelope de magnésia bisurada (arma de suas brincadeiras de cócegas); uma bermuda até acima dos joelhos e chinelas franciscanas de couro. Lá eu tentava espiar os calendários com mulheres semi-nuas pelos cantos dos olhos enquanto tinha que manter a cabeça quieta.

Outro passeio semanal era a antiga feira da Parangaba, quando era numa pracinha bem arborizada numa rua paralela à Av. José Bastos, perto de onde é hoje. A feira tinha de tudo e naquela época era legal ter passarinhos cantantes em gaiolas de madeira e arame. Lá compramos o pinheiro que adornou anos a fio a frente da casa dos meus avós. Levei-o no meu colo, numa latinha de leite, ia do banco até quase o teto do taxi. Quando pinheiro atinge a cumeeira da casa, o dono da casa morre! ouvi alguém dizer. E assim foi.

O que eu me lembro do meu avô não consegue descrever o homem que ele foi. Toda a bondade, ética, honestidade, generosidade e todos os adjetivos que o dicionário puder conter, chegaram até mim pelo que seus filhos me contaram; principalmente pela minha mãe e pelo livro do Tio Roberto, Meu Pai, Meu Amigo, Meu Irmão. Lembro do seu passinho lento, do chinelo arrastando de noite no corredor da casa, das brincadeiras com o Rex (um pequinês que ele implicava como se fosse gente), dos jogos de gamão na varanda, dele com a vovó, no finalzinho da tarde; dele botando a gente pra dormir na rede, A benção, Vô.

Mamãe conta que eu fiquei doente com pouco mais de um ano de idade. Mandaram-me para Fortaleza pra me consultar: era curuba! Vovó passava o remédio, Vovô abanava com um LP. Depois, em cada férias e após a separação, em 1981, foi quando ele foi também meu pai.

Em 1986 fomos, eu e o Nani, morar em Manaus com o Tio Roberto. Era o começo do ano. Despedi-me de minhas irmãs, despedi-me de minha mãe, de minha avó, e só comecei a chorar no colo do Vovô Jesus. Nunca mais o vi. Ele morreu em março daquele ano doente em decorrência de um malfadado cateterismo, não sem antes perder seu braço e sua sanidade.

Nunca fui supersticioso. Me recuso a acreditar em um mundo em que um pinheiro vença um velho cowboy.

Ah, vovô! Que saudades!

Que saudades!

5 comentários:

  1. Eu sou mesmo uma sortuda por fazer parte da vida de alguém tão especial quanto você, meu anjo lindo... Você é para mim um exemplo de grandeza espiritual de retidão, de gratidão, de altruísmo e, como você disse do vovô Jesus, que infelizmente eu não conheci, nem todos os melhores adjetivos do dicionário conseguiriam lhe descrever como você é realmente! Te amo pra sempre!!!

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  2. Meu filho, a descrição que fez do seu avô não poderia ser em um cenário melhor do que um saloon do velho oeste. Vc. só esqueceu que ele desmanchou a estrela do xerife e fez as alianças para ele e a mamãe. Uma vez o Alexandre contou esta história para pessoas estranhas na praia, em São Luís e todos riram muito das mentiras que o avô contara para ele.
    Ele era incrível,como marido, pai, avô e amigo e deixou toda a saudade que uma pessoa tão especial pode deixar. Em compensação, deixou ensinamentos que marcaram coraçõeszinhos infantis que vc. trouxe à tona de maneira tão sensível. A correção que tenho a fazer, é que ele nos deixou no dia 23 de abril, levando com ele todo nosso amor.

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  3. Obrigado, meu anjo, pelo seu elogio imparcial. Te amo.
    Obrigado, mãe. Minha memória fica sempre à prova quando escrevo estes textos. Sua contribuição é complemento essencial para as falhas que o tempo deixou das lembranças de minha infância. Bjs.

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  4. Caso você não tenha lebrado ele ontem, 20.06.2011, se fosse vivo, teria feito 101 anos. Faltou na sua descrição as batalhas que ele travou de baioneta com os japoneses na segunda guerra mundial e lhe deixou um cicatriz na perna. Mais ai já é outro capitulo que com certeza você escreverá depois. Obrigado pelas lindas palavras, deste que soube ser pai de tantos. Tio Roberto

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  5. Tio, eu consigo lembrar de pouca coisa e ainda tenho uma grande dificuldade de resumir e deixar o texto num tamanho fácil de ler, como uma crônica. Estes comentários como o seu e o da mamãe são um enriquecimento enorme para o conteúdo do que escrevo. Obrigado a vocês.

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