segunda-feira, 11 de julho de 2011

MARÚSIA RODRIGUES


Um Conto de Natal

Era o dia 22 de dezembro de um ano do passado.

O comércio da Rua Grande, como era conhecida a Rua Oswaldo Cruz no centro da cidade de São Luís, capital do estado do Maranhão, encontrava-se apinhado. As pessoas acotovelavam-se no balcão das lojas gritando pelas vendedoras já atordoadas pelo burburinho crescente. Mais tonta ainda estava eu, que juntamente com meu marido tentava comprar presentes de Papai Noel para nossos filhos. Após muito tempo e sacrifício, compramos uma bicicleta, um carrinho, uma bola e uma boneca, que fariam a alegria das crianças enquanto fossem novidade. Fomos então à casa de uma amiga para escondê-los até o dia da véspera de Natal. Guardamos tudo e seguimos para casa.

Ufa! Terminei e vou descansar, pensei satisfeita com missão cumprida. Deitei tranquilamente com um braço sobre os olhos, como é costume meu, e tentei relaxar. Quem dera! Alguém me toca e vejo uma gorduchinha de joelhos em cima da cama com os grandes olhos verdes sorrido de euforia. Ela me diz:
- Mãe, já fiz minha carta para o Papai Noel. Você coloca no correio?

- Claro que sim, respondi sem preocupação, pois ela já me confidenciara que queria uma bicicleta.
Peguei o papel com um sorriso, pois o mesmo continha uma única frase e vários desenhos de rosas e bonequinhas feitos por ela. Li o seguinte texto:

- “Papai Noeu, quero ganhá de prezente uma bisicleta Caloi azul. Obrigada, Ângela Márcia.”

Meu Deus, eu comprei uma Monark vermelha, e agora? Tomara que ela não perceba, ela é tão criança. Guradei a carta, voltei a relaxar e...

- Mainha, lê a minha carta para o Papai Noel.

Uma carinha séria como se carregasse a mensagem mais preciosa do mundo estava ao meu lado.

- Que rapazinho lindo! - eu falei e li com dificuldade a letrinha infantil:

-“Papai Noel, quelo ganhá um calinho de contole remoto vemelho. Um beigo, Nâni.”

Que horror! Eu comprei um carrinho de fricção azul! Daqui para o dia de Natal minha cabeça vai dar um nó! Eu não imaginara que criança sabia escolher a marca e a cor dos objetos.

Volto a descansar e mergulho num cochilo gostoso, desses que a gente deseja nunca acordar. Mas alegria de pobre dura pouco, pois escuto uma vozinha bem longe:

- Mãe, acorda mãe!

Sinto que vou gritar de raiva e abro os olhos para a carinha rechonchuda de cabelos loiros encaracolados e a mão mais gordinha ainda agarrando um papel tão sujo de chocolate quanto a mão que o segura. Recebo mais uma correspondência para o doce velhinho, Papai Noel, sendo esta mais difícil de ler do que a outra.

- “Papai Noeu, quelo uma bola de coulo voly. Bigado. Pabiano.”

Deus do céu, eu comprei uma bola Pelé para o Fabiano e sinto que fiz tudo errado!

Não quero ficar acordada e me esforço para dormir, pois ainda falta uma que não sabe escrever e está dormindo, graças a Deus. Caio em sono profundo e sonho com brinquedos doentes em camas da UTI. Uma bicicleta Monark vermelha toma soro pelo Guidão; um carrinho de fricção azul tem vários tubos ligados aos pneus e uma bola furada respira com dificuldade pelo balão de oxigênio, lutando para encher outra vez. Que pavor! Acordei mais cansada ainda e fui brincar com a Mariana, que estava no berço. Os cachinhos loiros caem na testa e eu os arrumo com carinho. Coloco-a no colo e começo então o diálogo que nunca deveria ter começado:

- O que minha princesa vai pedir ao Papai Noel? Perguntei olhando-a nos olhos.

- Uma boneca – respondeu ela.

- Uma linda boneca morena? Voltei a interrogá-la.

- Não, lola – foi a sua resposta.

Respirei fundo e fui em frente. Afinal, ela não sabe o que diz.

- Já sei, minha linda, você quer um bebê que chora. Que tal uma que se chama Barbie?

- Não. Quelo a Suzi.

Tenho a sensação de que vou desmaiar, a vista fica turva, o suor escorre do rosto com mais intensidade do que na loja superlotada. Tenho um enorme sentimento de frustração e a sensação de que vou decepcionar quatro crianças no natal.

Espero o dia do nascimento de Jesus. Ele chega aumentando as minhas angústias que se transformam em terror e ansiedade.

24 de dezembro de um ano do passado.

As crianças escolhem as melhores roupas de dormir, tomam a bênção ao papai e à  mamãe e vão para a cama. Será que os minutos nunca vão se transformar em horas? Finalmente dormiram. Chegou a hora. Fomos tirar os presentes do porta-bagagens do carro e levar para os devidos lugares. Pensei em uma forma alegre de arrumá-los, para esconder meus enganos, e coloquei balões coloridos no guidão da indesejada Monark vermelha, bolas de gude no carrinho de fricção azul, que eu não podia transformar em carro de controle remoto vermelho; mais bolinhas de gude de todas as cores e tamanhos serviram de apoio para a triste bola Pelé, que achei parecida com a bola furada dos meus sonhos. A boneca, coitada, parecia desolada, segurando uma porção de balões coloridos, amarrados aos dedinhos tão pequenos quanto os da sua dona. Tinha apitinhos e balas em todos os brinquedos. Está terminado.

Finalmente fomos dormir, mas eu fiquei insone à espera do amanhecer, aguardando o primeiro apito soar. O apito soou e eu não consegui me mover. Parecia que meu coração queria saltar do peito, Ouvi as batidas na porta do quarto e a gritaria eufórica e parecia que todos choravam ao mesmo tempo. Levantei com dificuldade e ouvi várias frases confusas. Consegui identificar as carinhas risonhas com as marcas de sono, os cabelos despenteados e os pés descalços.

Uma montava uma Monark vermelha como se fosse a coisa mais importante do mundo, os balões batendo no seu rosto sorridente. O outro se agachava para mostrar como o lindo carro azul corria veloz. Era o Aírton Senna com seu carro de fórmula 1 invadindo o meu quarto. O outro chutava uma bola Pelé que não era negra e acertava em cheio um gol no meu coração. Mas faltava uma. Onde estava minha pequenininha? Corri para o quarto e ela, muito concentrada, passava higiapele em uma Barbie sem roupas e sem sapatos, com o cabelo molhado de um banho na pia do banheiro.

Esse foi um dos dias mais felizes da minha vida e eu guardo com a melhor das recordações.

Em sua inocência, a criança fica feliz de ser lembrada, não importa como e o que possa ganhar. Papai Noel esteja sempre presente em cada lar e que embaixo da cama de cada criança dormindo exista sempre uma lembrança do natal e no quarto ao lado, pessoas que os amarão muito, por toda a sua vida.
...

Esta não é uma obra de ficção, qualquer semelhança com personagens reais foi meramente proposital.

~*~

2 comentários:

  1. Fazia tempo que eu queria que a mamãe postasse este conto. Ela escreveu há, sei lá, uns 120 anos e sempre me tocou bastante por ter sido um dos últimos Natais (senão o último) antes de sua separação do Papai.

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  2. Fabiano, não sei lhe dizer quando um texto tem ou não qualidade literária .Posso lhe afirmar que leio muito e sei exatamente quando estou diante de um texto que foi escrito para ser sentido, revivido... vez ou outra releio ÉRAMOS SEIS" , " atualmente leio" 127 minutos" e releio pela décima vez"os Maias"...Então sei quando algo foi escrito para Mim, para Todos... esse conto é um dos mais lindos que já li, tem a sutileza de Clarice lispector que nos pega sempre pelo FIM.Fiquei feliz... eu tenho um Rio QUE PASSA NA Minha Aldeia e ele se chama MARÚSIA...o conto é o mais EMOCIONANTE que ja LI,pq é o conto da minha amiga e passou direto para minha alma.
    aninha

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