sábado, 28 de maio de 2011

MINHA PÃE E MEU(S) PAI(S)


02. Alexandre

Meu irmão mais velho foi o primeiro a assumir um papel de figura paterna para nós, principalmente para mim, após a separação dos meus pais. Deixando de lado as picuinhas infantis e brigas comuns entre irmãos, ele procurava gerir nossas andanças, se responsabilizando por mim até praticamente eu me formar.

Veja bem, ele tinha 9 anos quando viemos pra Fortaleza. Lá em São Luis ele já guardava todos os seus trocados, que ganhávamos aguando o jardim da frente da casa, no bico de um sapato social dentro do armário da gente, um branquinho de duas portas cor de laranja. Desde pequeno se destacava pela sua organização financeira, uma espécie de economia pessoal e pão-durismo que se aplicava mais a ele mesmo do que a nós. Se precisássemos, ele estaria lá, disponibilizando todas as suas economias pra que realizássemos sonhos muitas vezes confusos.

Sendo justo, Alexandre sempre foi meio pai pra mim. O formato da família em que fui criado era muito diferente do que nossa geração como pais está formando, extremamente preocupada com uma relação íntima com seus filhos. Antigamente Pai era o provedor e nas relações com seus filhos não chegavam realmente a conhecê-los. Era mais como um direcionamento, regras e punições; o boletim do colégio, os presentes de aniversário e Natal, as saídas de fim-de-semana. As mães é que estavam lá. E no meu caso, eu tinha também meu irmão mais velho.

Ele era meu guia. Responsabilizava-se por mim. Sempre presente com sua personalidade pragmática, não nos furtávamos das pequenas brigas, das implicâncias (e pense como o caboco era implicante), com as disputas saudáveis por notas mais altas.

Os castigos eram mais severos que os atuais. Surras de cinturão ou chinelos de couro com solados de pneu, os irmão briguentos abraçadinhos de joelhos nos degraus das escadas etc. Alexandre era petulante; mamãe dava uma lapada e perguntava Quer mais? Ao que ele prontamente respondia Quero! com o choro travado nos dentes.

Lembro-me de uma vez que ficamos, eu e o Nani, apelido dele desde pequeno, de castigo em quartos separados no mesmo corredor. Sentamos na porta e começamos a jogar damas; eu jogava e empurrava o tabuleiro pra ele; ele jogava e empurrava o tabuleiro pra mim. Jogos sempre foram elos entre a gente. Numa das férias que tivemos em Fortaleza fomos visitar o Tio Peba na casinha que ele estava morando com a primeira mulher, grávida da Teté. A memória prega peças, mas eu acho que era num conjuntinho de casas cor-de-rosa pertinho da casa da Vovó Valderez na Praça da Igreja Matriz da Parangaba. Naquele dia o Tio Peba ensinava xadrez pro Alexandre na varanda enquanto eu pulava as janelas como todo bom menino de 5 ou 6 anos de idade. Mais tarde Alexandre me ensinaria o jogo que nos proporcionaria milhares de horas de diversão entre nós; as minhas cada vez menos raras vitórias enquanto crescíamos premiavam a paciência fantástica que o Alexandre tinha em jogar com alguém que no começo não gerava um real desafio.

Alexandre era extremamente dedicado aos estudos. De vez em quando jogava com a gente, mas eu não perdia uma pelada de rua, um vôlei no calçamento com a rede armada de um poste pro outro, saía com os garotos da rua, andava de bicicleta por aí. Não deixava de fazer o que era pra ser feito, tirava boas notas e tudo, mas o Alexandre era obstinado.

Teve um ano que ele foi morar com o Tio Roberto em Manaus. Eu fiquei desolado. A dupla estava separada. Minhas notas decaíram, minha mãe teve que sentar comigo pra estudar História pra prova de recuperação. Foi o pior ano da minha curta vida até então. No ano seguinte eu fui pra Manaus também, e aí ficou tudo bem.

Quando viemos morar em Fortaleza novamente, pingávamos da casa da Vovó Valderez para o apartamento na Aguanambi com a mamãe ou para a casa da Vovó Rosália na Parangaba. Morávamos algum tempo em cada lugar. Andávamos sozinhos de ônibus pra cima e pra baixo. Quando estávamos na casa da Vovó Valderez, íamos a pé pro colégio mais de vinte quarteirões de distância pra poupar os trocadinhos das passagens. Quando estávamos na Vovó Rosália íamos de ônibus mesmo e juntávamos aquelas fichas coloridas que recebíamos para a contagem de passagens e que serviam pro Vovô Jesus jogar pôquer com os filhos. Juntamos até mesmo depois de ele morrer. Eu fiquei com as fichas do vovô até que uma empregada bem-intencionada resolveu que elas mereciam ser lavadas com água fervendo.

Fazíamos sozinhos os pagamentos pra mamãe no centro da cidade. Com o troco sempre íamos ao cinema, seja o São Luís, o Diogo ou o Fortaleza. Às vezes víamos mais de um filme. Cinema era outro de nossos elos, e foi isso que nos levou anos depois a investir numa malfadada locadora de vídeo. A dívida que angariamos daí foi assumida pelo Alexandre e ele passou um tempão pagando sozinho com o dinheiro que juntava de seu trabalho.

Quando fui crescendo notei o quanto meu irmão perdera da própria infância em prol da necessidade de absorver mais responsabilidades conosco, comigo, com nossas irmãs e com minha mãe depois da separação dela com nosso pai. Era como se alguém tivesse dito pra ele que agora ele era o Homem da Casa e ele assumiu isso com toda a sua alma. Seu amadurecimento neste sentido era palpável como era palpável como ele não se deixava magoar. Raramente eu via meu irmão chorar. Essa dureza e distanciamento eu não tive e quando chegamos à adolescência eu pude contribuir um pouco com conselhos pro meu irmão mais velho. A relação dele com crianças é tão envolvente que acho que isso é parte de uma busca da infância mal aproveitada.

Quando se formou me chamou de lado e disse que deveríamos alugar um apartamento pra nós dois e assim fizemos. Eu ganhava dois salários mínimos, um eu entregava na mão dele, o outro eu usava pras passagens de ônibus pra faculdade, pra cervejinha e uma viagem ou outra. Quando o dinheiro apertou a gente chamou o Vladimir pra ocupar o quarto que tínhamos vago no apartamento. Um ano depois conheci Letícia e fui morar com ela.

Pela primeira vez na vida andei independente do meu irmão, meu primeiro pai substituto.

6 comentários:

  1. Parabéns, meu filho, não pq. escreve bem mas,por saber o valor da gratidão. Era muito fácil ser pai ou mãe para você,pelo seu temperamento carinhoso, obediente,(na maioria das vezes)e generoso.
    Qto,ao Alexandre,o lado paterno sempre foi inerente à personalidade dele. Nunca vou esquecer como ele foi desprendido qdo. assumiu o pagamento de uma faculdade particular para Mariana, ficando só com o dinheiro contado para as necessidades mais básicas.
    Por estes motivos,admiro tanto meus filhos e amo todos com toda força do meu coração.

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  2. Não pude deixar de começar por ele. Acho que às vezes as coisas não são ditas e a gente nem percebe até que começa a escrever. Bjs.

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  3. Tio Baxim adorei suas crônicas .Não deixe de contar suas histórias!Com carinho de sua sobrinha Beatriz.

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  4. Obrigado, minha linda. Bom saber que você está lendo o que eu escrevo. Por favor não repita os palavrões que sei o Tio Baxim usa aqui! Bjs.

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  5. Que massa! Não posso dizer que acompanhei a història, talvez tenha, talvez, mas sò o final. Os dois sempre foram uma referência para mim, e é bom saber e entender melhor como tudo se passou... Abs!

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  6. Li a crônica no Site Lima Coelho. Parabéns
    http://www.limacoelho.jor.br/vitrine/ler.php?id=5812

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